quinta-feira, 19 de junho de 2008

JARBAS JUAREZ ANTUNES - haverá artista mais original em Minas ?
João Amílcar Salgado
Sou testemunha presencial de como se revelou ao mundo o talento polimorfo deste originalíssimo artista mineiro. É glória de três cidades: nasceu em Coqueiral, viveu a infância e a juventude em Nepomuceno e, em Belo Horizonte, Guignard e o ambiente artístico dos anos dourados lhe fizeram o acabamento criativo. Forma com Álvaro Apocalipse e Amílcar de Castro a santíssima trindade da presença artística sul-mineira na Capital. Acompanhei a progressiva ampliação dos rótulos que veio recebendo: no início era excepcional desenhista, depois foram-lhe reconhecidas as várias facetas de pintor, mais tarde as de escultor e finalmente o impacto de seu domínio das cores. É sobretudo o intrigante comunicador da arte que atinge grande número de apreciadores, quase sempre silenciosos, mas sempre atentos e sempre à espera de sua próxima e inédita maneira de expressar-se.
Cito o exemplo do cientista Wilson Beraldo. Por volta de 1977, topo com ele numa exposição do Jarbas. Perguntei que sabia do artista. Respondeu que não o conhecia pessoalmente, mas o vinha acompanhando ao longo da carreira e estava ali para ver suas novas criações. Apresentei um ao outro e o Jarbas ficou sabendo que o descobridor da bradicinina (a maior realização da ciência mineira e brasileira, depois da descoberta da doença de Chagas) vinha sendo seu admirador silencioso há bastante tempo.
Outro cientista que muito o admirava era Liberato DiDio, o anatomista. Fiel a sua ascendência italiana, DiDio estava à busca de estudantes e docentes inclinados a unir ciência e arte. Freqüentavam seu laboratório anatômico os docentes-artistas Geraldo Dângelo, Jairo Câmara, Hélcio Werneck e Edson Moreira, os estudantes-artistas Edson Razuk, Alberto e Rui Paolucci e Carlos Fakir e também os desenhistas-ilustradores Tenente, Alemany e Jordá-Poblet. Garanti ao DiDio que aquele jovem, o Jarbas, não queria emprego, apenas permissão para desenhar cadáveres e peças anatômicas, pois era estudioso da técnica de desenho de Leonardo Da Vinci. E foi assim que o nosso artista teve para sua privilegiada formação, além das aulas do mestre Alberto Guignard, substancioso preparo em anatomia artística. Fez para mim uma escultura do coração que repousa sobre a palma da mão e, para o neurocirurgião Sebastião Gusmão, o cérebro em idêntica posição. Vale lembrar que desde bem cedo o Jarbas era ligado aos dois formidáveis médicos-artistas Chanina e Konstantin Kristoff, seus condiscípulos sob Guignard.
Quando foi criado o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais pedi ao Jarbas para restaurar um retrato danificado de Carlos Chagas. Daí ele passou a freqüentar as aulas de História da Medicina. Ele ficava na platéia com uma prancheta e, caso o tema o inspirasse, esboçava uma ilustração. Daí surgiram as duas esculturas citadas, uma gravura do aleijão do Aleijadinho e outra do centauro Quíron. Ainda hoje temos a esperança de que esta se torne uma escultura para ficar à entrada da Faculdade. E a missão do artista seria esculpir o centauro com base não só no desenho já feito, mas aproveitando os estudos elaborados por Auguste Rodin para uma peça que nunca chegou a confeccionar.
Mas as duas maiores contribuições do Jarbas, dentro desta cooperação, foi o grande painel sobre a história da medicina que se exibe no salão principal do Centro e a suntuosa capa do livro ERÁRIO MINERAL (1735), em edição fac-similar. Encantado com a beleza dessas duas obras, o professor Joaquim Carlos Salgado, também companheiro de juventude do artista, exigiu que fizesse painel análogo e igualmente fascinante para a Faculdade de Direito da mesma Universidade.
Em meu livro O RISO DOURADO DA VILA (2003), descrevo como a originalidade do Jarbas foi descoberta, sendo ele ainda garotinho, em virtude de seu modo inusitado de empinar papagaio. Falo da procedência macabéia dos Antunes. Relato como ele se encontrou pela primeira vez com Guignard. Descrevo como indicou o Henriquinho (futuro Henfil) para substituí-lo na elaboração de cartuns para um jornal. Lembro quando o visitei num apartamento quarto-e-sala, onde também morava o hoje conhecido poeta Afonso Romano de Santana e, mais tarde, numa república onde também moravam outros futuros intelectuais mineiros.
Jarbas, em sua magnífica versatilidade artística, ilustrou livros infanto-juvenis, um deles de Ângelo Machado, que era um dos jovens presentes naquele laboratório anatômico antes citado. E ilustrou um livreto da maior importância na história da inteligência mineira. Trata-se da segunda edição (1967) de ATUALIDADE DE DOM QUIXOTE, de autoria de Francisco Campos , ainda mais que prefaciado por Abgar Renault (1950). Sim, este multifário quixote da arte de Minas foi acertadamente lembrado para ilustrar o tema Quixote, no que este tem de criação imensamente original, ou seja, o romance por excelência, aquele que é trans-centenário, trans-etário, sempre imitado e nunca superado. E o desenhista alcançou justo o mesmo foco dos poderosos cérebros de Campos e Renault. Em outras palavras, basta observar as ilustrações, para verificar como o artista caminhou junto, unívoco ou unígrafo, com o pensador e o poeta. E foi assim que os três atingiram a significação máxima do protagonista, que, por sinal, só poderia ter sido engendrado das profundezas do pensamento ibérico.


O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais
A ONOMATOMANCIA NEPOMUCENENSE
João Amílcar Salgado
Os habitantes da cidade de Nepomuceno desenvolveram há muito tempo o hábito de achar semelhanças fisionômicas entre as pessoas. De mania divertida passou a ser um esporte, principalmente por influência do cinema, quando vários artistas que apareciam na tela eram apontados como semelhantes a pessoas da cidade. O costume progrediu de modo recíproco, quando as pessoas da cidade passaram a ser apelidadas com o nome (onomato) de atores ou personagens. E a coisa se expandiu com os jovens que buscavam estudo ou trabalho em outras cidades. Qualquer pessoa desses lugares poderia ser apelidada de seu parecido. Uma penúltima etapa desse cacoete foi a busca de semelhanças não mais entre pessoas, mas entre acontecimentos, especialmente os engraçados. E mais uma etapa afinal ocorreu na mente de alguns fanáticos colecionadores de tais semelhanças. Estes passaram a suspeitar que outras cidades conspiravam para imitar coisas que acontecem, aconteceram ou (pior) acontecerão em nossa cidade.
A essa mania própria de Nepomuceno dei o nome de ONOMATOMANCIA NEPOMUCENENSE. Com isso, a antiga Vila passa a ser A CAPITAL ONOMATOMANTE DO MUNDO. Tal título ficou incontestável diante de três episódios que elevam o fenômeno nepomucenense ao plano internacional. Interessante é que dois deles têm como protagonista nada menos que o saudoso Edmilson Cardoso Costa, personalidade queridíssima de nossa história. Pouca gente o tratou por seu nome verdadeiro, pois era conhecido por nada menos que dois apelidos: Zotinho e Passata. Era Zotinho, em seu lado sério de corretor de café, um dos melhores que já tivemos. E era Passata, em seu lado boêmio, companheiro da juventude e disputado para estudantadas, seja na Vila seja na Capital.
O primeiro episódio internacional de onomatomancia nepomucenense em que o Passata se envolveu foi quando o ator Marlon Brando dançou o último tango em Paris, no filme do mesmo nome (1972). Todos os ex-estudantes nepomucenenses que viram a cena na tela exclamaram: será que a família Bertolucci de Lavras relatou ao autor da fita os mesmos passos de tango exibidos pelo Passata no cabaré Montanhês, em Belo Horiconte, em 1959? Ao saber dessa façanha do Passata, o diretor Bernardo não teria resistido à tentação de fazer do causo um filme. Não só incluiu a mesma dança no roteiro, mas encerrou o enredo com ela e, mais que isso, fez dela o nome do próprio filme. É onomatomancia prá ninguém botar defeito!
O segundo episódio do mesmo Passata foi quando a CIA resolveu procurar, em todos os países, os sósias mais perfeitos do presidente Reagan. Isto porque este tinha levado seis tiros, em 1981, e o papel dos sósias era aparecerem em público em vez do presidente. Ora, desde quando Reagan era mero e péssimo artista de cinema, nós já o chamávamos de Passata quando aparecia na tela do cine-teatro da Samina (nossa inesquecível Sá Mina: Guilhermina Guimarães Cardoso). Um agente da CIA foi informado disso por um primo, professor visitante da antiga ESAL, e veio bater uma foto sigilosa do Passata em Nepomuceno. Nosso herói tirou o terceiro lugar no mundo, entre os sósias selecionados. Mas quase esganou o ianque, quando este lhe propôs sete mil dólares por mês para levar tiro em vez do verdadeiro Reagan.
O terceiro episódio foi quando passou aqui o filme Melhor Impossível, estrelado por Jack Nicholson (1997), e este aparecia na tela evitando pisar nos riscos do piso das ruas de Nova Iorque, ou seja, o ator protagonizava autêntico fenômeno de catação-de-risco. Todos os nepomucenenses que viram a cena exclamaram: olha lá!, o Jack está, vergonhosamente, imitando cena acontecida em Nepomuceno em 1946, sendo que o protagonista original era nosso querido dentista e professor de inglês Sílvio Veiga Lima! E note-se que o Jack era ali uma celebridade a fazer o papel de um catador-de-risco, enquanto hoje sabemos que, pelo menos, duas celebridades, o cantor Roberto Carlos e o ator Leonardo DiCaprio confessaram ser catadores-de-risco em suas vidas reais.
Até o momento, a única hipótese para a chegada da catação-de-risco aos EUA é ter sido levada por um nepomucenense chamado Joaquim Lucinda, que se vangloriava de ter ido até lá, mais de uma vez, por um atalho secreto de poucos dias, a pé. Na Europa, o fantástico pseudologista barão de Münchausen (1720-1797) hoje é também conhecido como o Lucinda europeu - e vice-versa. A propósito, meu grande amigo José de Souza Andrade Filho, um dos maiores histopatologistas brasileiros - ao ler meu livro O RISO DOURADO DA VILA, onde traço a história da onomatomancia nepomucenense - deduziu que ele próprio, era, sem o saber, o papa onomatomante da medicina, graças a suas pesquisas sobre analogias na terminologia médica.
Não posso encerrar sem proclamar que a onomatomancia nepomucenense foi alçada até mesmo às artes plásticas, pois está registrada no enorme e belíssimo painel pintado por Jarbas Juarez Antunes (Jarbinha, Binha) para o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte. Nele está sintetizada a história da medicina e aparecem ali um homem examinado por doutores medievais, um outro de óculos dissecando um cadáver e um terceiro de avental ensinando pediatria, que, depois de disfarçados a meu pedido, são, em ordem respectiva, o próprio Jarbas, eu e o Edward Tonelli, onomatomanticamente eternizados por uma homenagem a nossa cidade.

O autor é professor titular de Clínica Médica da UFMG e historiador do Sul de Minas






A MÁ-DIGESTÃO E NEPOMUCENO

João Amílcar Salgado

Nesta data verifica-se a repercussão do lançamento de um livro que honra a cultura de Minas. No 39º Congresso Brasileiro de Gastroenterologia, em novembro de 2006, na cidade de São Paulo, foi lançada a obra DISPEPSIA NA HISTÓRIA & A HISTÓRIA DA DISPEPSIA, versão em livro da tese de mestrado do médico Carlos Amílcar Salgado. Trata-se de um texto que é de interesse de pessoas cultas, especialmente historiadores, podendo até ser lido pelo público em geral. Nele a gente aprende como a má-digestão, que os médicos chamam de dispepsia, foi importante na história da humanidade. Por outro lado, ali é relatado como a dispepsia atormentou grandes figuras da humanidade, a exemplo do imperador Marco Aurélio, do califa Al-Mansur, do iluminista Voltaire, do conquistador Napoleão e do cientista Einstein. Também permite deliciosa viagem ao longo da busca por remédios capazes de aliviá-la, desde plantas e minerais, até produtos da alquímia e da tecnologia atual. Os aplausos recebidos pelo livro é mais uma evidência da projeção da gastroenterologia mineira e da Universidade Federal de Minas Gerais no plano nacional.
Entre os muitos comentários que o tema sugere, é oportuno lembrar sua relação com a cidade de Nepomuceno. Isto porque a tese de Carlos Amílcar Salgado acabou sendo uma homenagem a seu avô, o farmacêutico João Salgado Filho, inventor de célebres gotas para má-digestão. O João Sargado, como era chamado pelos nepomucenenses, vinha observando que o pessoal da Vila sempre comparecia a sua farmácia à procura de alívio para problemas com a digestão.
O sintoma parecia mais comum aqui do que em outros lugares. A princípio ele suspeitou de uma raça de lombriga que só dá aqui, chamada pelo Malico de lombriga de coleira. Mas é quase certo que o mal seja mais simples: resulta do gosto de algumas de nossas famílias pela boa mesa e por refeições exageradas. Querendo aliviar fregueses e amigos, ele começou por selecionar as melhores poções já conhecidas e afinal decidiu criar fórmula inteiramente nova.
Certo dia, um homem chegou à farmácia com cara de desespero e disse que estava com a boca do estômago crescida e não agüentava mais aquele empanzinamento. O Sargado trouxe uma xícara com dois dedos de água e pingou dez gotas do novo remédio. Em poucos minutos veio o alívio e o sofredor exclamou: foi o padre Vítor que me guiou prá entrar nesta farmácia! Daí que o povo passou a chamar o medicamento de gotas do padre Vítor. A verdade é que quando interrompemos a manipulação dessas gotas, muita gente se sentiu desamparada na cidade.
O próprio inventor, que por sinal foi batizado pelo padre Vítor, ficou tão feliz com sua criação que quis dar-lhe um nome à altura, chamando-a tecnicamente de gotas eupépticas, mas, com o tempo, aceitou o apelido dado pelo povo.
Assim, posso muito bem imaginar a satisfação do avô: a razão e o sucesso de sua invenção se reproduzindo no tema e no sucesso do livro de seu neto.

O autor é professor titular de Clínica Médica da UFMG e historiador do Sul de Minas