quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

HÉLCIO LOBO DE FARIA
O penúltimo romântico
João Amílcar Salgado
Sua voz de locutor na Rádio Inconfidência tornou-se inesquecível, mesmo com a tecnologia ainda precária dos anos dourados. Hoje ela seria muito melhor apreciada, pois sua qualidade excepcional residia exatamente nos atributos de tons que dispensavam a impostação. Aos ouvidos femininos, ela devia ter reverberações magnéticas. Suas ouvintes ficavam ansiosas para conhecer o dono da atrativa dicção e quando descobriam pertencer àquele simpático e circunspecto moreno, tornavam-se fâs permanentes. Com o tempo passou a se parecer mais e mais com Evaldo Gouveia, o grande compositor de canções eternas. Chegou a dar autógrafos passando-se pelo notável músico, disfarce brincalhão que a seguir desfazia entre risos e abraços.
Por sinal, sua coleção de gravações em vinil era riquíssima de diferentes interpretes das criações desse seu sósia: Que Queres Tu de Mim?, Brigas, Alguém me Disse, Sentimental Demais,Tango para Teresa, Somos Iguais, O Conde, O Trovador, Bloco da Solidão e outras. Chegou a acumular muitos discos, pois as gravadoras viam no locutor um meio efetivo para divulgar seus lançamentos. Além disso, tinha discos valiosos de Valdir Calmon, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra e Maysa e também dos clássicos do samba e da música hispano-americana. Ele gentilmente me emprestou a maioria deles para que eu gravasse em fita e hoje constituem um tributo de saudade a este romântico definitivo.
A mais preciosa delas é a gravação do Lamento Borincano em orquestração majestosa, que me fez reviver os bailes com a orquestra Cassino de Sevilha. Em meu livro de memórias, O RISO DOURADO DA VILA (2003) descrevo a inesquecível re-inauguração do clube de minha cidade, exatamente com esta orquestra e esta execução: “Chega a hora: onze da noite. O salão já está repleto e num vozerio danado. De repente, súbito silêncio corre o público. É o desfile dos músicos que vão chegando para ocupar seus lugares. Parece apresentação de toureiros, mas suas vestimentas são ainda mais bonitas, pois misturam a destes com os mais vistosos uniformes militares. Gala assim jamais foi vista, com tanto enfeite e tanto brilho! Completam o cortejo duas morenas andaluzas de vestido longo, com uma fenda até o meio das coxas. Ao andar, suas pernas perfeitas se entremostram provocantemente. São duas lindas carmens que desencadeiam audível onda de suspiros na rapaziada, seguida de outra onda, esta de resmungos das mocinhas.Os músicos se sentam e ficam mexendo discretamente em seus instrumentos. Ouve-se, então, leve rufo e eles se põem de pé. É o instante em que começa aquela coisa inesquecível, ao mesmo tempo comovente e triunfal: são os acordes magníficos do Lamento Borincano, trinado na orquestração de Peres Prado. A beleza esmagadora dos metais e violinos, se prolongam por deliciosas variações da melodia, pois, a cada vez, um naipe de instrumentos se ergue e a coisa se faz cada vez mais inebriante. Quando a música cessa sob a explosão de aplausos, os músicos apenas se curvam em agradecimento, pois de imediato mudam o ritmo e começa a rumba Quien Será. É tocada num sincopado tão rebolante que o salão em peso começa a se mexer. E então as duas moças saem a dançar com dois dos rapazes da orquestra. Depois de duas voltas de exibição, somos convidados pelos dois pares para iniciarmos o baile.” Quando o livro saiu, li para o Hélcio esse trecho e seus olhos marejados brilharam de nostalgia. E comentou: Que pena, eu não estar lá nesse dia!...
Num aniversário em sua casa ele me desafiou a achar em sua coleção uma preciosidade para ouvirmos. Propus que eu apontaria uma e ele outra. A que escolhi era cantada por Geysa Celeste e era assim: Tu me acostumbraste, a todas esas cosas. / Y tu me enseñaste, que son maravillosas. / ... / Por eso me pregunto al ver que me olvidaste. / Por que no me enseñaste cómo se vive sin ti. A dele, cantada por Galves Morales, era assim: Nuevamente vendrás hacia mí, / Yo lo aseguro, / Cuando nadie se acuerde de tí, / Tú volverás./ / ... // Cuando estés convencida / Que nadie en el mundo, / Te puede querer como yo, / Tú vendrás a buscarme, / Sé muy bien que vendrás. E nós dois ouvimos todas esas cosas com os olhos perdidos lá atrás nos anos dourados. Mais emoção veio em seguida quando a Leila pôs a Sarita Montiel para cantar Besos de Fuego e depois Nostalgias. Não teve jeito: ela e eu saímos dançando pela sala...
Logo que conheci o Hélcio, eu disse à Leila que a voz dele me era familiar, de tanto ouvir a Rádio Incondidência, mas que sua figura também me trazia vaga lembrança. Ela disse: já sei é do INPS, onde ele trabalhou por muitos anos!... Respondi que não, a lembrança é de tê-lo visto se exibindo em passos perfeitos de dança, no clube Montanhês. Ele danou a rir e todas as vezes que se falava em música ou dança, ele me pedia para lembrar esse diálogo. Quando foi exibida a série sobre Hilda Furacão na televisão, nós dois consumíamos muita prosa em discutir quais os trechos que eram realmente acontecidos e quais eram frutos da imaginação do Roberto Drummond. Este nessa época era meu vizinho e ambos freqüentávamos o salão do cabeleireiro Gonçalves, onde a Hilda era o tema principal. Lembro-me de um dia ali onde estavam também o Tite (dublê de humorista e exímio cabeleireiro), o Zé Maria Rabelo e o Ariosvaldo de Campos Pires.
Quando a Leila e eu nos casamos, ela temeu que eu me recusasse a comparecer à Tenda do Silêncio, onde o Hélcio seria o oficiante da cerimônia. Ela ouviu com a maior alegria, quando lhe disse que, não sendo adepto daquela religião, iria com o maior prazer. Seria, demais, uma homenagem a meu avô que sofreu absurdas perseguições por ter-se tornado espírita e a homenagem seria também para minha querida prima Zulmira, médium de projeção nacional e internacional. Outra que muito se alegrou com isso foi a dona Vange, minha mãe, pela oportunidade de presenciar rito matrimonial para ela inédito. No ofício, o Hélcio se viu dominado por particular emoção, pois a noiva era sua irmã, sendo que, mais que isso, ele era o segundo pai dela, pois perdera pai e mãe muito cedo.
E foi com aquela dicção perfeita de profissional do rádio que Hélcio Lobo de Faria oficiou a cerimônia. Parecendo estar em transe, proferiu conceitos morais altíssimos, certamente advindos de todos os santos, de todas as religiões e de todos os tempos. Mas ele estava ali diante de um auditório incomum. E todos o ouviam como se ouvissem a um profeta. Sim, naquele caso, era a mais seleta audiência jamais reunida naquela Tenda: era a alta cúpula da principal universidade de Minas Gerais.

Hélcio Lobo de Faria é cunhado do autor e faleceu em 2008