quinta-feira, 26 de agosto de 2010

terça-feira, 24 de agosto de 2010

DISCURSO DE POSSE DE JOÃO AMÍLCAR SALGADO, COMO MEMBRO HONORÁRIO DA ACADEMIA MINEIRA DE MEDICINA. BELO HORIZONTE, 10-08-010

Que honra é esta, se sou apenas um pobre homem do caminho velho das Minas Gerais?

Precolenda mesa, composta de doutos representantes da comunidade médica e de seletas expressões da sociedade mineira. Saúdo cada qual, na pessoa do presidente Gilberto Madeira Peixoto. Saúdo Valênio Perez França e Marie Louise Stein, os grandes ausentes de hoje. Saúdo a minha turma de 1960, que neste ano aniversaria os seus 50 anos.

Por favor, do alto de seus cabedais, atinem com algo paradoxal. Sua generosa presença e o simpático comparecimento de todos, amigos e familiares, prestigiam um ato ao mesmo tempo honroso e embaraçoso. Sim, esta obsequiosa investidura perturba e embaraça minha modéstia caipira. Nesta circunstancia, o desembaraço só é possível se devolvo a distinção a quem me trouxe até aqui. A começar por meu fraterno companheiro desde a infância: o hoje eminente infectologista pediátrico Edward Tonelli.

Entre tantas e tão precoces titulações, sintetizo-as numa só, que ficará na história e que nos bastaria a nós outros: Tonelli é um dos heróis internacionais da luta anti-pólio. Nós dois somos tão irmãos que seu pai, o inesquecível Zico Tonelli, figura na capa de meu livro de memórias. João Batista Tonelli, o Zico Tonelli, e meu pai, o João Sargado, que era assim chamado, foram o principal alfaiate e o principal farmacêutico de nossa cidade de Nepomuceno. Ali, gastavam boa parte de cada dia a pregar peças um no outro. E também a discutir gravíssimas questões de futebol.

João Salgado Filho, meu pai, foi farmacêutico, professor de colégio e poeta, precisamente como Carlos Drummond de Andrade. E mais: foram contemporâneos no curso de Farmácia em Belo Horizonte. Drummond deixou Itabira e se federalizou, tornando-se poeta transnacional. Meu pai ficou em Nepomuceno, para praticar o humorismo, criando poemas e pomares. Tendo falecido cedo, forma com Belmiro Braga, Dantas Mota, Vinícius Meyer e outros a categoria que chamei de poetas municipais. Eles agitaram boa parte da cultura mineira no século 20. É tema que estudo com carinho e com o indispensável apoio da querida escritora Leila Fonseca Barbosa, sobrinha-neta de Belmiro Braga.

Meu avô, João de Abreu Salgado, compõe o grupo peculiar de educadores que se formaram normalistas no início do século 20. Estudaram, na mesma escola normal de Três Pontas, ele, Samuel Libânio (um dos fundadores de minha Faculdade de Medicina), Carlos Caiafa (pai), Pimenta da Veiga (pai) e outros. João de Abreu Salgado é o primeiro e principal biógrafo do beato Padre Vítor – o santo sacerdote negro do Sul de Minas. Abreu e Caiafa, tão amigos, não sabiam (ou sabiam?) que seriam bisavós dos mesmos bisnetos, Carlos Amílcar e João Vinícius, meus filhos.

Fui avisado de que o membro honorário da Academia não tem patrono. Então peço licença para transformar tal impedimento em permissão. Unilateralmente permito-me designar não um mas mais de um patronos virtuais: o próprio Edward Tonelli e aqueles outros queridíssimos amigos, representados por Arnaldo Antônio Elian, Fernando Araújo, Luiz de Paula Castro, Wilson Luiz Abrantes, Hélio Lopes, Márcio Ibraim de Carvalho, Márcio José de Castro e Silva, Pedro Raso, Nassim da Silveira Calixto, Carlos Alberto Barrros Santos, Jairo Carvalhaes Câmara, Cláudio Azevedo Sales (que me brindou com o transporte até esta solenidade, num dos sofisticados automóveis de sua coleção) e Ernesto Lentz, este meu dileto colega de turma desde os bancos do Colégio Estadual. São os muitos que muito insistiram para que eu aqui chegasse. Entre todos, sublinho dois, que cometeram o exagero de indicar-me como seu sucessor: Pedro Salles, o notável historiador da medicina brasileira, e José de Noronha Peres, o primeiro grande virologista deste país. Do apelo de Salles, a filha Adélia, também escritora e historiadora, prosseguiu na convincente ressonância, em mais que evidente prova de nossa duradoura amizade. A eles acrescento Javert Barros, o primeiro radiologista eleito paraninfo, exatamente em minha formatura e a quem saudei como orador da turma de 1960.

Proclamo também meus patronos os grandes médicos da historia mineira cuja obra estudei. Tenho-os em minha admiração mais enternecida. Certo seria citá-los e também seus feitos, mas a lista é longa. Vou representá-los por um grandioso trio científico: Vital Brasil, Carlos Chagas e Wilson Beraldo; e uma invejável trindade literária: Agripa Vasconcelos, Pedro Nava e Guimarães Rosa.

Vital Brazil Mineiro da Campanha foi batizado assim com estas palavras. Foi o demonstrador internacional da eficácia do soro antiofídico, desautorizando gigantes da ciência. Desde menino, eu o achava parecido com meu avô, seu parente. Sofreu há poucos dias segunda morte com o incêndio irresponsável do Instituto Butantã, obra tão sua, à qual mesquinhamente não quiseram dar seu nome.

Carlos Ribeiro Chagas - este jamais distinguiu a pesquisa laboratorial da investigação de campo e nem estas duas da pesquisa clinica. Por não distingui-las, estava capacitado a fazer a inigualável descoberta que fez, revelando ao mundo a doença que traz seu nome. Trata-se de descoberta processada com esmagadora elegância. Revelou o tripanosoma causador e deste chegou à doença aguda. Desta subiu às formas clínicas e enfim à profilaxia. Esse modo de descobrir era e é inédito, pois é inverso às demais descobertas de doença, em toda a historia da medicina. Primeiranista, li o louvor à peculiaridade de sua façanha, nas palavras enfáticas de um parasitologista norte-americano. Isso me fez forte emoção, que cresceu quando me lembrei de que ele nasceu ali mesmo na Fazenda Bom Retiro, na cidade de Oliveira, não muito distante de onde nasci. Daí que decidi seguir seu exemplo. E de fato minha atividade de pesquisador foi propositalmente exercida no laboratório, em meio a animais experimentais, e no campo, em meio a cafuas e insetos, tanto quanto na clínica ambulatorial e hospitalar. Tal inspiração foi recompensada por meu afortunado encontro com a paciente Berenice. Dela extraí, em 1961, o mesmo micróbio que Chagas identificara em 1909.

Wilson Teixeira Beraldo, autor, com colaboradores, da segunda maior realização da ciência brasileira, a descoberta da bradicinina – é uma das mais fascinantes figuras humanas em minha lembrança. Com ele sucedeu que, na publicação que anunciou a descoberta, seu chefe apareceu em primeiro lugar na lista de autores. Este fato é comum em publicações científicas, mas aqui serve para homenagear João Galizzi, meu chefe. Na publicação do reencontro da paciente Berenice, colocamos seu nome em primeiro lugar. Pois bem, ele não só exigiu que meu nome fosse o primeiro (eu era um recém-formado de 24 anos) como deslocou o seu para o final, na seqüência de co-autores.

Por favor, atentem para algo que nos deve causar nobilitante e estremecido orgulho. Esta monumental e inimitável galeria médica é patrimônio de um Estado, Minas Gerais, cuja história colonial começou 200 anos depois do resto do país! Tudo isso será mais admirável ainda se fizermos um acréscimo. Além das façanhas científicas citadas, é também mineira a maior realização tecnológica brasileira: o conjunto de invenções de Santos Dumont.

E a trindade das letras nada fica a dever aos cientistas. Agripa Vasconcelos é aquele que, em narrativas romanceadas, buscou retratar a essência de nossa identidade. É o mesmo objetivo que tiveram Nava e Rosa por outros meios. Pedro Nava, em sua busca, se fez o maior memorialista lusófono. Guimarães Rosa, em sua inquietação, se tornou o mais criativo prosador da língua portuguesa.

Cismei que cabia a mim, incapaz de obra semelhante, acrescentar modesto complemento ao que realizaram. É o que resumo a seguir.

Para isso, lembro a exclamação inicial que fiz. Donde ela surgiu?

Estava eu sentado diante de Pedro Nava, no Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, em nossa primeira conversa. Observei-lhe: você, no livro Baú de Ossos, disse que era um pobre homem do caminho novo. Ele respondeu, sorrindo: disse e sou... Emendei: pois você, que é do caminho novo, está falando com um pobre homem do caminho velho. Este simples paralelismo em nossa origem nos fez amigos imediatos.

E passamos a comparar os dois caminhos. Falei que de fato sou do caminho velho, num ponto que fica um pouco a oeste da cidade de Ibituruna. Esta foi o primeiro aldeamento não-indígena nesta Província.

Não é de agora que busco a essência mineira nas obras de Pedro Nava, Guimarães Rosa e Agripa Vasconcelos. Este diplomou-se no Rio. Rosa foi contemporâneo de Nava em nossa Faculdade e é omitido sistematicamente por este. Adiei falar-lhe sobre isso e fiquei sem suas razões. De qualquer modo, importa é o caráter mineiro. A paisagem dos caminhos de Minas indica que este se vem prefigurando em pedra há milhões de anos. Duas muralhas, a do Mar e a da Mantiqueira isolam esse jardim brasileiro e sua gente. Os rios completam a obra, pois se ensimesmam em seu fluxo. O Grande, em vez de ser irmão do Paraibuna, se interna rumo oeste. O Sapucaí e o Verde, em vez de irmãos dos Mogis, descem rumo norte; e acumulam uma das mais espessas camadas de húmus do planeta. São imitados pelo São Francisco, pelo Paraopeba e pelo Guaicuí. Estes, em vez de afluir tributários do próprio Grande, preferiram compor tropelias de águas em imenso sertão. E é um sertão tão grande que afinal exigiu três gigantes das letras para caracterizá-lo: o sertão de Afonso Arinos, o grande sertão de Rosa e os sertões de Euclides.

Essa opção pela interioridade sertaneja está, pois, esculpida na própria paisagem física. E veio fazer esplêndido arco gótico com igual interioridade na paisagem humana. Arrefecida a corrida pelo ouro, os que aqui habitavam e não foram mortos se somaram aos que aqui chegaram e gostaram de aqui ficar. Estes sim e não os outros vieram a se definir como os autênticos e radicais mineiros.

Configuramos milagrosa mentalidade convergente. A ela dei o nome de tríplice inclinação totêmica: dos tapuias americanos, dos celtas europeus e dos bantos africanos.

Sim, Minas nasceu totêmica. É filha direta do totemismo tapuia, co-extensivo aos antecedentes andinos da religião aimará. A volúpia do ouro quase nada deixou da língua, da religião e dos costumes tapuias, exceto o pejorativo de suas botocas, a mentira de seu canibalismo e as arengas contra sua sublime insubmissão – propalados por seus genocidas. Há 200 anos vasculhamos seus vestígios culturais, que, infelizmente remontam a quase só ossos, principalmente os desenterrados por Lund e as feições surpreendentes de Luzia.

Minas nutriu-se a seguir do totemismo céltico-galego. Este nos veio da predominância minhota em nosso componente luso. Contrariando a tendência na Eurásia, o totem celta tem por referencia não o velho salvacionismo oriental, mas os mistérios brácaros do Ocidente.

No extremo noroeste ibérico, os celtas se compraziam no jogo de divisar a Ursa Maior, para, dela achar a Ursa Menor e na cauda desta identificar a estrela polar, astro guia, indicador do Norte, garantia fiel do retorno ao lar. O espaço legendário dessa estrela resultou no campus stellae, que é o campo-estrela ou a campo-estela ou Compostela. Enquanto isso, nós aqui em Minas - filhos de minhotos e netos de galegos – persistimos, mesmo inconscientes disso, num eterno peregrinar, no mesmo rumo.

Notável é que um poema totêmico de Minas, aquele que louva a Bárbara bela, e que a diz ser do Norte estrela – acabou-nos servindo de evocação à mensagem libertária da Inconfidência.

Ora, essa gente, que é a maioria de nós e que não tem mar, foi no mar curtida. De tanto se aventurar em ignotos oceanos, perdeu a sobriedade - e adquiriu o vicio da embriaguês das ondas. Em Minas, privada da imensidão atlântica, o espírito argonauta em nós achou de vir navegar quer as ondas encapeladas das serranias mineiras, quer os doces alísios de nossos congonhais.

Enfim, a mentalidade mineira adquiriu vigor no totemismo banto. Este está incrustado na predominância sul-africana daqueles que escravizamos; principalmente das mães-de-leite em quem amamentamos. Ele chegou aqui por uma razão muito especial. Justo porque entre os bantos havia mineradores. E havia também as belas e meigas escravas cabindas, aquelas que os senhores-de-engenho do norte não conseguiam comprar, mas os senhores–do-ouro do sul podiam pagar. Seu totem se relaciona ao monoteísmo núbio e deste se vincula ao monoteísmo histórico. Daí que o congado de nossa infância pode ser visto como o reencontro em Minas de gente da África com a evolução do monoteísmo. Este foi inicialmente totêmico entre os núbios e, via Egito, foi levado ao Mediterrâneo, trampolim que o fez circundar o mundo.

Para terminar, voltemos a Pedro Nava.

Antes de sua morte, escrevi um trecho que prometera a ele e não cheguei a enviar-lhe. Nele digo o seguinte.

Muitos dos ascendentes de nós mineiros decidiram passar além da dor e ultrapassaram o Bojador. Assim, do mar salgado, muito do sal são lágrimas de nossos ancestrais. Por cruzá-lo, muitos de nossos avoengos choraram e muitos em vão rezaram. Quantas noivas ficaram por casar, para que aquele mar fosse um mar também dos mineiros! E esse mar não é o simples mar Atlântico. Este tem fim. O mar com fim é dos outros. O mar sem fim é o mar lusitano, e portanto mineiro também. Valeu a pena? Não, não valeu, pois inventaram o Estado do Espírito Santo e nos privaram desse mar salgado, tão nosso! Por isso é que o rio Doce, qual indignado e indomável aimoré, não quis fazer companhia ao Grande e ao São Francisco. Preferiu invadir o Espírito Santo para nos devolver o mar sem fim de Fernando Pessoa.

Muito obrigado.