quinta-feira, 2 de setembro de 2010

NEPOMUCENO
De como esta cidade está no mapa sentimental de Minas
João Amílcar Salgado
Qualquer observador já se encantava por Minas Gerais mesmo antes de 1700, sobretudo pela paisagem. Após essa data, houve a gradativa sedimentação do espírito mineiro e os visitantes mais ainda se fascinavam, desta vez tanto pela paisagem como pelo modo mineiro de ser. Ainda no século 18, um minerador, depois de viver feliz e enriquecer aqui, concluiu que D. João V, rei de Portugal, seria muito idiota se não transferisse a sede do reino para esta província. O próprio Tiradentes também disse, é claro que pensando em Minas: se todos quisessem, poderíamos fazer do Brasil uma grande Nação.
O medo de isso acontecer fazia tremer aqueles que levavam daqui enorme quantidade de ouro e gemas. Tanto que impediram o acesso de Minas ao Atlântico. Hoje se sabe que, se tivéssemos mar, seria inevitável nossa independência, muito antes de 1822. Já no século 19, um engenheiro inglês, depois de percorrer Minas Gerais, propôs que o Império Britânico usasse de seu poderio para anexar a seus domínios esta encantadora região. Curiosamente acrescentou que, caso isso fosse feito, os novos donos teriam muito trabalho em moldar o jeito tranqüilo de nossa gente ao estilo enérgico necessário à exploração de tão maravilhosas riquezas.
Estudo o fato de que a cultura mineira contém virtudes únicas que a fazem ultrapassar generosamente as fronteiras de nosso Estado. Por outro lado, o GRANDE SUL DE MINAS compreende as águas vertentes descidas do norte até o Rio Grande e ao mesmo tempo engloba toda a chamada Zona da Mata Mineira. Quem forçou a Zona da Mata a separar-se do Sul de Minas foi gente traidora de Minas. Isso acabou inibindo a precedência juizforana na industrialização brasileira, inclusive causando a localização fora de Minas da usina de Volta Redonda, a primeira siderúrgica do país. E, para que esta produzisse aço, cinicamente vinham buscar o minério em Minas.
Todo esse preâmbulo é para ressaltar os privilégios de Nepomuceno, localizada a igual distancia dos três maiores centros metropolitanos, no coração da área mais desenvolvida do país. E estamos vivendo um tempo em que o Brasil, apesar de muitos obstáculos, está em vias de se tornar a quinta nação mais rica do mundo, como profetizou o estadista Tiradentes, há 220 anos atrás. Além dessa singularidade geopolítica, contamos com inestimável privilégio histórico. Nepomuceno situa-se bem perto da Estrada Real, tanto é que a rodovia Fernão Dias, quando ainda era de terra, passava por aqui, contornando a igreja Matriz, subia a Rua Rubem Ribeiro e saía pela Rua Ana Idalina. Esse caminho, entre a cidade de Parati e Sabará, foi chamado de Caminho Velho e foi usado de 1674 até 1710, quando, para o escoamento do ouro, foi substituído pelo Caminho Novo, entre o Rio de Janeiro e Vila Rica. Antes, entretanto, de 1710, o Caminho Velho já era uma rede de caminhos e o trecho próximo a Nepomuceno passou a ser cada vez menos usado, pois os viajantes passaram a desviar-se na hoje cidade de Cruzília em direção a São João Del Rei.
Depois de 1710, havendo menos pressa para chegar ao ouro de Sabará e Vila Rica, caçadores de ouro, entre eles os próprios parentes de Fernão Dias, apelidados de os Bueno da Fonseca, esquadrinharam o Caminho Velho. Acharam, pouco antes de 1737, boa quantidade de ouro nas imediações de um afunilamento das águas do Rio Grande e ali passaram a lavrar essa riqueza. O lugar passou a ser chamado de Lavras do Funil e nesse funil foi construída, há pouco tempo, uma usina hidrelétrica.
É claro que também deduziram haver ouro nos afluentes do Rio Grande, nas imediações do garimpo inicial, e uma das lavras foi estabelecida no rio do Cervo, entre as pedras de uma corredeira hoje chamada Banho - que pode designar tanto banho de gente como banho de cascalho. Um dos que mais tarde ainda lucraram com o ouro dali pode ter sido um mulato hábil no trato desse metal, chamado João Inácio Dias, que passou a residir no povoado próximo ao Banho. O povoado veio a ser a cidade de Nepomuceno e nele surgiu a Rua Nova onde eram encontrados os artífices do lugar: carpinteiro, tintureiro, músico, ferreiro, ourives, barbeiro, alfaiate, açougueiro, padeiro e outros. Hoje a Rua Nova tem o nome do ourives João Inácio Dias, de quem descende uma das mais queridas famílias nepomucenenses.
Quando eu era criança e passava as férias na Trumbuca, achei debaixo de enorme pé de jatobá, que declarei ser meu, vários instrumentos de pedra dos antigos índios. Maravilhado e sentado naquela sombra, ficava a imaginar como era a vida deles ali antes da chegada dos portugueses ao Brasil. Mais tarde fui visitar o local onde existiu o quilombo da Bárbara e passei a estudar seu povo, especialmente seu último líder, o Lolão. Hoje investigo os demais quilombos: Retiro, Calunga e Bacia, que seriam quilombos-sentinelas do grande Quilombo do Cascalho, entrincheirado na Serra das Três Pontas. Os índios daqui (cataguás?, puris?, caiapós?, cambuavas?, garanguis? trumbucas?) e os quilombolas foram os primeiros e mais autênticos nepomucenenses. É nosso dever levantar o máximo possível de sua história, inclusive a violência de que foram vitimas. Alguns nomes de lugares que retratam esse passado são cheios de poesia, de sugestões, ou de interrogações: Ermo, Contendas, Vinte-Horas, Quatis, Morembá, Repolho, Cabeças, Arranca-Rabicho, Limeira, Paineiras, Coqueiros, Pinhal, Piraquara, Bocaina, Esmeril, Cascavel, Carrapato, Queima-Capote, Desidério, Sapé, e Sapecado.
Antes da chegada das plantações de café a Nepomuceno, a economia girava em torno da produção vegetativa de madeira, gado, banha, açúcar e cachaça. Como tudo era de baixa produtividade, as fazendas tinham de ser muito grandes para acudir famílias de muitos filhos. No início, os casamentos entre primos e até entre tios e sobrinhos amenizavam a redução das propriedades. Mas, no século 19, foi inevitável a diáspora de herdeiros que se dirigiram ao oeste, onde era possível a posse gratuita de terras e o desenvolvimento, com pouco capital, de novas fazendas gigantes. Daí que as famílias iniciais de Nepomuceno e região hoje contam com parentes no oeste de Minas, no Triângulo, no noroeste paulista, em Goiás e em Mato Grosso. Por exemplo, fundadores das cidades mineiras de Uberlândia e Ituiutaba, bem como da cidade goiana de Mineiros, são relacionados à família Alves Vilela de Nepomuceno. Os fundadores de Mococa e Casa Branca em São Paulo são relacionados a nossos Garcia, Figueiredo e Lima. Um parente dos Pereira de Nepomuceno fundou Bauru e consangüíneos de nossos Junqueira, Diniz e Antunes fundaram Franca, ambas importantes cidades paulistas. Um recente governador de Goiás, Maguito Vilela, é neto de um Figueiredo Vilela de Coqueiral.
Os povoados de Lavras e de Nepomuceno surgiram de motivos diferentes. O de Lavras nasceu de uma capela, hoje a Matriz da cidade. Gente que não se dava com o tumulto do garimpo do Funil originou um povoado a certa distância dali. Luiz Gomes Salgado, o dono das terras desse local, decidiu construir uma capela em louvor de Santa Ana, autorizada em 1751. O patrimônio doado por ele eram umas capoeiras nas vizinhanças da dita capela, isto é, o atual centro urbano de Lavras. Os descendentes de Luiz Gomes Salgado, fundador de Lavras, hoje são os admirados nepomucenenses da família Teófilo Salgado.
Já o povoado de Nepomuceno surgiu da fazenda do Congonhal, ainda hoje existente, mas sem o casarão primitivo. Os escravos e agregados da fazenda habitavam um arruamento, hoje rua Mariana Januária, que ligava o casarão até o local onde foi erguida uma capela, hoje a Matriz, em louvor de São João Nepomuceno. Nessa época disseminou-se pelo mundo o culto a este santo que viveu 300 anos antes. O fervor foi tão grande que seu nome foi dado a lugares, pessoas e até a navios. O dono da fazenda Congonhal era Mateus Luiz Garcia e o povoado surgido de sua fazenda veio a ser distrito de Lavras, mais tarde promovido a Vila de Lavras. Daí que até hoje o povo de Nepomuceno chama sua cidade de Vila. Ainda agora a fazenda do Congonhal pertence a familiares de Mateus, no caso os filhos do estimado casal João e Vera Veiga.
A maioria das terras da cidade de Nepomuceno, entretanto, não pertencia aos Garcia, mas compunha a imensa propriedade de Vicente Ferreira Costa, o célebre sesmeiro capitão Vicente, da Fazenda da Lagoa. Mateus e Vicente eram capitães. Ser capitão nessa época, antes da Independência, era muito mais do que coronel depois desta. A família Garcia/Figueiredo/Vilela era oriunda de imigrantes açorianos e a família Costa/Salles/Pádua era de ascendência bandeirante. O latifúndio do Capitão Vicente chegava perto da sede da Fazenda do Congonhal. Separando as duas propriedades, passava a Estrada Boiadeira, hoje Avenida São João (uma das ramificações do Caminho Velho). Os familiares do Capitão Vicente reivindicaram que uma faixa abaixo da Estrada Boiadeira era ainda de seu domínio, daí que a rua abaixo da Estrada, apelidada de Rua dos Tocos, passou a ser oficialmente denominada Rua Francisco Lima, herdeiro de Ferreira Costa - mas o povo prefere chamá-la Rua das Árvores. Chamam-na assim por ser a única arborizada, em comparação com as outras três primeiras ruas da cidade: Rua Mariana Januária (de ir à capela), Rua Direita (do comércio, hoje Ernane Vilela), Rua Nova (dos artífices, hoje João Inácio Dias).
Por falar em árvores, Mateus Luiz Garcia, fundador de Nepomuceno, deve ser considerado pioneiro do movimento ecológico mineiro e brasileiro. Os comerciantes da praça principal de Lavras queriam derrubar as belas árvores ali existentes, por cobiça financeira. O povo se opôs. Para garantir a derrubada, os malvados contrataram a proteção de Januário Garcia, o homem mais temido em Minas, por andar com um colar de sete orelhas, retiradas de sete irmãos, assassinos de seu irmão. As árvores não foram abatidas e algumas ainda estão lá para orgulho de lavrenses e nepomucenenses, bem como para a apreciação dos turistas. Quem foi o defensor vitorioso das árvores foi o primo de Januário, nosso Mateus Luiz Garcia. Na praça, diante deste, o temido Januário Sete Orelhas, segundo a tradição oral, teria dito: sei que o primo Mateus não é capaz de pisar numa formiga, mas taí um homem que não enfrento de jeito nenhum...


O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.
É também historiador do Sul de Minas e autor do livro de memórias O RISO DOURADO DA VILA, 2003.
Este texto, com ligeiras modificações, corresponde ao discurso proferido pelo autor, como orador oficial no 99º aniversário da cidade de Nepomuceno, em 29/08/010