quinta-feira, 28 de outubro de 2010

SEBASTIÃO NATANIEL SILVA GUSMÃO

SEBASTIÃO NATANIEL SILVA GUSMÃO

De talentoso nauta de improváveis travessias aos postos máximos da neurocirurgia brasileira e da carreira universitária

João Amílcar Salgado

De todos os extraordinários feitos que eu poderia enumerar como cometidos pelo médico, neurocirurgião, cientista, professor, historiador, inventor e escritor Sebastião Gusmão, prefiro me restringir ao sobredito, ou seja, que ele é em essência um talentoso nauta de improváveis travessias. Sim, sou testemunha de que ele fez heróicas intervenções neurocirúrgicas, coordenou o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de História da Medicina, inventou aparelho de vivissecção terapêutica do encéfalo, escreveu oito livros, além de três em redação, assumiu há pouco o posto máximo de presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia e assume hoje o posto máximo da carreira universitária, que é o de professor titular de Cirurgia da Universidade Federal de Minas Gerais.

Prefiro, repito, enaltece-lo não por tantas dessas altas e nobres realizações, mas por incríveis diagonais subjetivas e objetivas, vislumbradas por mim em sua originalíssima biografia.

A primeira travessia ocorreu quando emergiu do ventre materno para a luz benfazeja de sua querida cidade de Itamarandiba. O inusitado aí não foi o parto, multíparo que era, mas de ter sido por mão de douto em vez de parteira. Na pequena agenda de Afonso Pavie está lá escrito: hoje fiz o parto da dona Nely, nasceu forte menino que receberá o nome de Sebastião. Isso ligou umbilicalmente o nascituro à França de Pavie.

A segunda travessia consistiu em passar pela ponte estreita entre as linhagens materna e paterna de sacerdotes, ambas pontilhadas de ilustres religiosos, inclusive bispos e cardeal. Pesou mais o lado paterno, atraído à desabusada amplitude intelectual, característica dos Gusmão, comprovada ao longo de séculos. Desde algum Gute Mann godo, até os Bartolomeu, Alexandre, Domingos, Xanana, Abimael e Rivadavia. Amplitude que se desborda mais pela ciência do que pela fé, mais pelo ativismo político do que pelo fervor apostolar, mais pelo cosmopolitismo do que pelo nativismo e mais pelo ecumenismo do que pelo sectarismo.

Mesmo antes de chegar à Capital, protagonizou inédita diagonal dentro da cultura mineira. De Itamarandiba a Pouso Alegre, descobriu as muitas Minas Gerais como realidade una. Era a antecipação do encontro entre dois fraternos amigos, ele e eu, sulmineiro que sou.

A passagem estreita do exame vestibular o conduziu ao contato iniciático com o cadáver. Ele não sabia, mas, na primeira vez em que seu bisturi feriu aquele corpo sem vida, já havia ali a marca da mão cirúrgica do futuro profissional, a qual, no entanto, principalmente em seu caso, era antes de tudo rara mão anatômica - que denominei, quando mais rara ainda, mão vesaliana. Eis outro ponto que nos irmana: a anatomia. Minha turma recebeu, em plenos anos dourados, a maior carga horária anatômica jamais oferecida. Daí passei a coligir tais raras mãos, a começar por aquelas de meus privilegiados colegas-de-turma, hoje astros desta arte, e também seus notáveis mestres formais e informais: Sálvio Nunes, Wellerson Lima, Wilson Abrantes e José Sílvio Resende. Recebemos também o primeiro curso específico de neuranatomia, a seguir transformado em disciplina. Estou assim autorizado a reconhecer no anatomista e neurocirurgião Sebastião Gusmão O PRÍNCIPE DA MÃO VESALIANA NEUROCIRÚRGICA BRASILEIRA.

Para completar sua especialização, auspiciosamente iniciada com seu primeiro mestre José Gilberto de Souza, só poderia dirigir-se à pátria de Afonso Pavie, o aristocrata francês que o partejou e que antes fizera a travessia França-Itamarandiba. Nessa contra-travessia Itamarandiba-França, feita por Sebastião Gusmão, consolidou-se um intercâmbio franco-mineiro anteriormente prenunciado por figuras ilustres de nossa historia, a exemplo dos estudantes de medicina mineiros inconfidentes de Montpellier e de Bordeaux, de Saint-Hilaire, Taunay, Renault, Sigaud, Couy, Peret e outros. Para a primeira guerra mundial, em seu final, o Brasil em vez de com soldados contribuiu com médicos, quando no Hôpital Brésilien, adaptado de um convento, impressionaram os de lá com a habilidade cirúrgica (análoga à do futebol e do samba), depois admirada também na América do Norte.

A seguir, no centenário de nascimento de Pasteur, comemorado a partir de 1922, a maquete de nosso Instituto do Radium foi exibida, com elogios, em Estrasburgo. O cirurgião René Leriche, um dos maiores do mundo, foi convidado a Belo Horizonte onde operou no mesmo Instituto. Com isso, as duas maiores expressões da cirurgia francesa, Leriche e Victor Pauchet, um professor em Estrasburgo e outro nascido em Amiens, estabeleceram relações com Minas, o primeiro por meio de Borges da Costa e o segundo por meio de Afonso Pavie, seu conterrâneo, seu ex-colega de curso médico e seu maior amigo. Por sinal, Costa e Pavie, ao lado de Hermenegildo Vilaça, são iniciadores da cirurgia moderna em Minas. Mais tarde, na gastroenterologia, floresceu belo intercambio entre o scolar Henri Sarles, de Marselle, e uma plêiade de médicos mineiros.

Quando Sebastião Gusmão foi especializar-se em Estrasburgo, renovou multiplicadamente essa múltipla ligação entre as medicinas francesa e mineira. E esta foi reforçada por luminosas amizades entre o brasileiro e dois imponentes vultos da neurocirurgia francesa: Daniel Maitrot de Estrasburgo e Pierre Galibert de Amiens – ambos devotados admiradores tanto do amigo como de Minas e do Brasil. Pelo serviço que Gusmão prestou à comunidade de Amiens, revelando-lhe a façanha tropical de Pavie, concederam-lhe o título de Doutor Honoris Causa da Universidade local

Intercâmbio igualmenate incomensuravel estabeleceu Sebastião Gusmão com outro luminar da cirurgia neural, o curdo Mamude Gazi Yasargil. Operando na Suíça, ele criou a microcirurgia encefálica, pelo que foi eleito o homem do século 20 da neurocirurgia mundial. Ele mantém comovente afeição a seu discípulo brasileiro e também à cidade de Ouro Preto. Atualmente, nos EUA, com 85 anos, ainda opera diariamente, mantendo-se ativo graças ao regime de comer maçã a cada meia hora, hábito de seu povo. Palavras semelhantes eu teria para outros amigos ilustres do Sebastião, espalhados pelo mundo, em virtude de um sem número de frutíferas travessias, do Japão às Américas. Todos estejam representados aqui pelo maior especialista em migração lusa ao Brasil, o bracarense Miguel Monteiro, recentemente falecido, a quem ora homenageamos muito saudosos, ainda mais que por certo viria a esta festa.

Nenhuma dessas sumidades, que tive o prêmio de conhecer, graças a meu convívio com o Sebastião, se iguala, no mais fundo de meus sentimentos, a seu pai, o sertanejo Sêo Nozinho, vernaculamente Natan Gusmão. Muito me orgulho de que Sêo Nozinho me tratava não como o intelectual que sou, mas como um dos demais fazendeiros de Itamarandiba, fazendeiro que sou de Nepomuceno. Conquistei-o quando me reconheceu amador igual de muitas das coisas que ele amava. A primeira delas foi a divina leitoa que a dona Nely nos serviu em minha primeira visita. Ela própria fez questão de dizer que meu elogio foi o maior, e garanto justo, que jamais recebera por suas muitas habilidades culinárias. E os causos com que o Sêo Nozinho e eu nos entretínhamos por horas a fio, se escritos, ameaçariam o famigerado autor Guimarães Rosa.

Certa vez cheguei a sua gostosa residência, junto a essa gente tão irmã, e, já no meio daquele abraço de matar saudade, Sêo Nozinho já foi adiantando que lembrara de algo que muito me interessaria. Ele queria contar que seu pai, Herculano, e seu avô, Joaquim, clinicaram como carimbambas naquela região por longos anos, auxiliados por um manual de Chernoviz. Só essa notícia já era fundamental para atestarmos o pendor hereditário do médico Sebastião Gusmão. Mas o que Sêo Nozinho acrescentou foi muito mais impressionante, precioso e significativo. Era que seu avô Joaquim Gusmão acabou sofrendo um derrame e perdeu a fala, mas não a escrita. Sendo ele insubstituível, o povo ficou aliviado quando soube que ele podia continuar atendendo a todos, usando apenas a escrita. Mas Seo Nozinho ressaltou: que os clientes não insistissem para que ele dissesse algo, pois de seu antigo e quase sempre educado vocabulário só lhe restou um palavrão.

E foi então que o Sebastião e eu verificamos que a época desse fato foi a mesma em que o notável neurofisiologista francês Pierre Broca descreveu o local cerebral da fala humana, em um paciente vítima aparente também de um derrame. Se instado a falar, o gaulês emitia sempre um esboço de palavra que ficou eternizada em várias línguas: tantan. Assim o palavrão brasileiro e o tantan relatado por Broca passaram a ser mais uma das misteriosas diagonais traçadas pelo argonauta Gusmão, em sua esplendente vilegiatura pela vida, pela ciência e pela cultura.