quinta-feira, 17 de novembro de 2011


HANSENÓLOGO JOSÉ MARIANO

Vertiginoso Damião moderno

João Amílcar Salgado

José Mariano - cujo sobrenome sumário me fez curioso até que esclareci ser palavra italiana, cognata de Mariani – impressionou-me numa aula sobre hanseníase, ministrada no meio de meu curso médico. Ali ele verbalizou e demonstrou tal ausência de preconceito para com os pacientes, a quem tratava atenciosamente, que essa autenticidade me fez seu admirador definitivo. Tudo isso somado ao domínio sobre cada aspecto da doença, a ponto de nos dar a sensação de também dominarmos seu diagnóstico, apenas com aquela simples primeira prática. Mais tarde, numa parada de ônibus em Japão de Oliveira, meu tio, Aprígio Salgado, e ele se encontraram. Acompanhei a conversa de ambos, encantado com a oportunidade de ter tão perto aquele homem raro, desta vez falando amenidades.

Hoje sei que sua esposa, Rute Pereira Mariano, acaba de escrever um livro de memórias, pois se deu conta de que viveu ao lado do marido uma vida incomum, cujas peripécias são dignas de serem amplamente partilhadas. Assim, ficaremos conhecendo melhor o notável hansenólogo, mas conheceremos também essa incrível dama mineira, protagonista de um companheirismo sem par para com o esposo e de uma ternura sem fim para com os filhos.

José Mariano formou-se na Universidade (Federal) de Minas Gerais em 1936, em uma turma brilhante, que incluía, entre outros, João Gallizi, Caio Benjamin Dias, Celina Aquino, Edmundo Paula Pinto, Milton Freitas, Efigênio Salgado, Íris Valadares e Gustavo Brasil. Isso explica sua segura formação de pesquisador científico. Antes de graduar-se, Mariano foi líder estudantil e presidente do Diretório Central dos Estudantes. Esse ativismo juvenil o faria entrar para a carreira política, caso o insigne mestre Antônio Aleixo não influísse para conduzi-lo à hansenologia.

Minas Gerais teve a vantagem de enfrentar a epidemia de lepra, que se abateu sobre o Estado e o sudeste do país, com quatro figuras extraordinárias: Antônio Aleixo, Orestes Diniz, José Mariano e Mário Mourão – ao mesmo tempo em que proeminentes sanitaristas nacionais mal-disfarçavam sua leprofobia. Some-se a estes o paranaense Heraclides César Souza Araújo, que deve ser considerado meio-mineiro por ter-se graduado em farmácia, em Ouro Preto, antes de ser médico. Para completar, o eminente antropólogo mineiro Domingos da Silva Gandra Júnior integra tal galeria, por sua tese de doutorado “A Lepra — uma introdução ao estudo do fenômeno social da estigmatização”, 1970.

O sanatório Santa Isabel já existia em Betim, criado pouco antes da formatura de José Mariano, e a grande contribuição deste foi a organização do sanatório Santa Fé de Três Corações, em 1942, onde fez dele um centro de estudos com as concepções cientificas otimistas emergentes da segunda guerra mundial. Desde antes de 1940, já se buscava medicamento eficaz contra a tuberculose. Neste ano, ocorreu o impacto do efeito fulminante da actinomicina contra o bacilo de Koch, substância, contudo, lamentavelmente tóxica. E um genial engenheiro agrônomo, o ucraniano Selman Waksman, partiu dela até chegar à estreptomicina em 1943, que salvou milhões de tísicos já em fase final da doença. Pelo parentesco microbiológico entre os bacilos de Koch e Hansen, foi forte a esperança de que logo surgisse antibiótico eficaz contra este ou contra ambos. Um medicamento surgiu, exatamente contra ambos, só 23 anos depois, em 1966: era a rifampicina – que, com o nome inspirado no excelente filme Rififi (1955), inaugurou família redentora de medicamentos (rifamicinas), retardo que foi cruel para José Mariano. Paralelamentem rastreava-se derivado promissor da sulfanilamida, mas a indústria temeu que os demais derivados desta, fonte de enorme lucro, se “contaminassem” com o estigma da doença. Diante da demora na pesquisa conclusiva, foi exatamente o grupo mineiro de hansenólogos, entre eles Mariano, que estabeleceu o uso rotineiro da sulfona (dapsona).

De minha parte, inspirei-me pela vida em fora em exemplos marcantes como o de José Mariano. Honra-me, por isso mesmo, ter participado decisivamente da formulação do Conselho Nacional de Saúde, emergente da Constituição de 1988, segundo a qual a saúde é direito de todos e dever do Estado. Para o cumprimento de tal princípio era necessário assegurar a participação vigilante dos usuários do sistema de saúde nos órgãos colegiados decisórios. Honra-me particularmente ter participado da sugestão de compor tal conselho com, nada mais, nada menos, o Bacurau, um ex-leproso. Eu o fiz em homenagem a José Mariano e a João Guimarães Rosa.

Minha emoção diante da sua presença tão ostensiva naquele plenário – presença surpreendentemente desenvolta, ali, entre seletos representantes! - me fez sentir compensado pela persistente pregação a que me entreguei na preparação da Assembléia Constituinte. E, naquele recinto, o nome Bacurau era pronunciado como de um dignitário, porque todos já estavam informados de que era o codinome de militante, com que aceitava e desejava ser tratado nos debates. Mas o nome verdadeiro do finalmente Conselheiro, então na alta esfera da República, era Francisco Augusto Vieira Nunes, herói de sublimes batalhas, que veio a falecer em 1997.

Como ex-paciente de numerosas internações, ao longo de 21 anos, ocorridas em Rondônia, no Acre e em São Paulo, e sem estar livre de marcas indeléveis da infecção, revelou-se admirável ativista do MORHAN, Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase. Inteligente, lúcido, consciente e corajoso, Bacurau escreveu: Contrair a hanseníase não é apenas contrair uma doença que agride os nervos periféricos: contraímos também uma nova identidade, que, não raro, é muito pior que a doença em si. Até porque, quando se diz “fulano é leproso”, está-se atribuindo a ele um estado permanente. Não se compara a “fulano está com hanseníase”.

Esta frase poderia ter sido assinada pelo igualmente inolvidável José Mariano.

O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais