segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

EM 1831, A POVOAÇÃO DE LAVRAS DO FUNIL, FUNDADA POR LUIZ GOMES SALGADO, É ELEVADA A VILA E NEPOMUCENO PASSA A SER DISTRITO DA VILA DE LAVRAS

Até 1831, o povoado de São João Nepomuceno era distrito da Freguesia de Lavras do Funil da Comarca de São João Del Rei. Segundo o historiador e educador Firmino Costa, as povoações de Lavras, São Manoel do Pomba, Curvelo, Tijuco, Rio Pardo, São Romão, Pouso Alegre e Formiga foram elevadas a Vilas pelo decreto de 13 de outubro de 1831, exarado pelo governo da Província de Minas Gerais. Guindadas a Vilas, passaram a ter Câmara Municipal, dois juízes ordinários e um juiz de órfãos.

A Vila de Lavras, pertencente à Comarca do Rio das Mortes (hoje São João Del Rei), passou a abranger duas freguesias: a de Lavras propriamente dita e a de Dores do Pântano (hoje Boa Esperança), acrescida no ano seguinte pela de Três Pontas. A Vila de Lavras então ficou assim composta: 1) Freguesia de Lavras, com os distritos de São João Nepomuceno (hoje Nepomuceno), Carmo da Boa Vista (hoje Carmo da Cachoeira), Rosário (hoje Itumirim) e Ingaí; 2) Freguesia de Dores (hoje Boa Esperança), com os distritos de Espírito Santo dos Coqueiros (hoje Coqueiral) e do Água Pé (hoje Guapé); e 3) Freguesia de Três Pontas, com os distritos de Carmo do Campo Grande (hoje Campos Gerais) e Varginha.

A primeira Câmara Municipal de Lavras foi instalada em 1832, quando o ouvidor geral da Comarca, Antônio Fortes Bustamante houve por criada e erigida em vila esta povoação. Foram eleitos para juízes ordinários João de Deus Alves do Nascimento, a ser sucedido por Joaquim Fernandes Ribeiro de Rezende, João Crisóstomo da Silva Bueno, a ser sucedido por Antônio José de Abreu, e para juiz de órfãos o capitão-mor José Fernandes Pena. A primeira Câmara de Lavras ficou composta pelos vereadores José Antônio Diniz Junqueira, presidente, Francisco José Teixeira e Souza, Tomaz de Aquino Alves de Azevedo, Antônio Caetano de Andrade, Antônio Simões de Sousa, Manoel Tomaz de Carvalho e Domingos de Abreu Salgado. Na primeira reunião este último não pôde comparecer e justificou sua ausência.

Observando os sobrenomes acima, verifica-se que todas as famílias iniciais da tradição lavrense estão representadas, exceto os Costa, os Pádua, os Botelho, os Monteiro e os Lima. Se lembrarmos que os excluídos já eram ligados por parentesco, é possível que o fator político tenha aí influído. O mesmo se aplica às famílias de raiz açoriana, como os Garcia, os Veiga e os Goulart.

A presença, entre os sete primeiros vereadores, do letrado luso Domingos de Abreu Salgado sugere influencia dos Abreu e dos Salgado habitantes do lugar antes de sua imigração. De fato, a família Salgado reivindica para Luiz Gomes Salgado o título de fundador de Lavras, por ter sido o doador do patrimônio da Capela erigida no lugar chamado Funil da freguesia das Carrancas, com a invocação de Sant´Ana. A provisão da ereção da capela, futura igreja matriz de Lavras, data de 1751. E, em 21 de abril de 1753, o patrimônio doado por Luiz Gomes Salgado é escriturado em Mariana como sendo umas capoeiras nas vizinhanças da dita nova capela, isto é, o atual centro urbano de Lavras. Assim, os Salgado se orgulham com razão de que um Salgado (Luiz Gomes) esteja presente na fundação da cidade de Lavras e outro Salgado (Domingos de Abreu) esteja presente entre os sete vereadores da primeira Câmara Municipal de Lavras.

Luiz Gomes Salgado é ligado aos Salgado de Pitangui, São João Del Rei, Nazareno, Andrelândia e Perdões. Vale lembrar que a esta família pertenceu o maior orador sacro de Minas, Matias Salgado. Por ser um orador barroco e de formação jesuíta, erudito e doutor em Cânones, pode ser considerado o padre Antônio Vieira das Minas Gerais. O pombalismo e o ciúme de invejosos seculares prejudicaram a memória de seu brilho. Os Gomes Salgado em Lavras passaram a ser denominados Teófilo Salgado, sendo o mais conhecido o capitão Teófilo Gomes de Morais Salgado, casado na família Pádua-Sales. Os Teófilo Salgado de Lavras passaram a ser família de grande projeção em Nepomuceno e os Abreu Salgado igualmente em Três Pontas e Nepomuceno.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

OS 100 ANOS DE HILTON ROCHA


João Amílcar Salgado
Em meu pequeno livro OS GLORIOSOS 44 DE 55, de 2010, comemorativo dos 50 anos da turma de 1960, pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), há o perfil de Hilton Rocha, como nosso homenageado. Um ano após, foi a vez de comemorarmos os 100 anos da Faculdade e de Hilton Rocha, ambos nascidos em 1911. Este sul-mineiro de Cambuquira cintila forte na constelação de ilustres Ribeiros dessa privilegiada região de nosso Estado. O Estado de Minas Gerais, aliás, ocupa posição única no Brasil, pois tem no caeteense Hilário de Gouveia o fundador da oftalmologia brasileira, em João Penido Burnier, originário de notável família juiz-forana, o criador de celebrado instituto oftalmológico em Campinas e em Hilton Rocha o maior oftalmologista brasileiro de seu tempo. Não bastante isso, o herdeiro do título de maior oftalmologista do país é também mineiro: Roberto Abdala Moura, diplomado na turma precedente à minha.
Na sessão em que a Associação Médica, a Academia de Medicina, a Faculdade, o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais e a família brindaram o centenário de Hilton Rocha, seu filho Ricardo Rocha causou forte emoção, relembrando aspectos da juventude e do cotidiano do homenageado. Tendo bastante semelhança física com o pai, inclusive a voz, e similar fluência verbal - o filho me surpreendeu quando não se esquivou de tocar na atuação política do pai, a que também me refiro no sobredito livreto.
Hilton Ribeiro Rocha estudou em colégio do Rio de Janeiro. Uma ideia de como era o ensino ali pode ser auferida do livro VIDA DE MENINO ANTIGO (1986) do também médico e também sul-mineiro Carlos Caiafa Filho. Hilton diplomou-se em 1933 e Carlos em 34, sendo Rocha torcedor do América, enquanto Caiafa era fanático pelo Atlético, este na certa contagiado por seu colega de turma e grande amigo, o artilheiro alvi-negro Mário de Castro. Outro que se formou um ano após o Hilton foi Javert Barros, coincidentemente o radiologista que ganhou do oftalmologista a votação para paraninfo de nossa turma. Como orador da turma eu o teria saudado. Na eleição, os favoritos eram Liberato DiDio, Hilton e Javert e o cabo eleitoral de Hilton era o doutorando capixaba Emir Soares, futuro senhor das lentes de contato.
Ouvi ainda criança alguém mencionar Hilton Rocha, pois a farmácia de meu pai era a sede de fato da UDN de Nepomuceno. Ali vi o udenista Alberto Correa Lima escrevendo a lista dos mais ricos cafeicultores locais para intimá-los a depositantes do novo Banco Nacional. E repetia que entre os da Capital estava gente não só rica mas famosa, como Hilton Rocha. Daí que meu pai foi companheiro de Hilton Rocha nesse empreendimento, surgido tão auspicioso e extinto em condições tristes e vergonhosas. O opulento sul de Minas foi fator estratégico da correspondente empreitada política que resultou na eleição de Milton Campos. Estavam juntos, por exemplo, o grupo de Boa Esperança, onde Milton foi promotor, comandado por Geraldo Freire, o de Três Pontas, tendo à frente Aureliano Chaves e o de Campanha, cujo condutor era o notável médico Zoroastro de Oliveira, pai do excepcional cirurgião Sérgio Almeida de Oliveira, que mais tarde cuidaria das coronárias de Hilton Rocha. Coordenava tal arregimentação o raro estrategista Oscar Dias Correa.
Além de Hilton Rocha, dois outros luminares simbolizavam o udenismo médico, então esmagadora maioria na classe. Eram eles Baeta Viana e Roberto Ribeiro de Oliveira Resende. Aquele atraía gerações de ex-alunos e este, discípulo dileto de Baeta, arrastava atrás de si a numerosa grei dos Resendes e dos Ribeiros espalhada pelo Centro, Sul e Mata. O fenômeno começou com fato único: um candidato presidencial, o Brigadeiro Eduardo Gomes, foi homenagem oficial de uma formatura de médicos, a turma de 1946, da atual UFMG.
Um dos ativistas sulmineiros era Bilac Pinto, que teria sugerido o posicionamento hostil da Associação Médica, liderada por Hilton, contra o médico Juscelino Kubitschek, governador pessedista do Estado. A manobra se destinava a inviabilizar a candidatura presidencial do diamantinense. Tais adversários não tinham sequer noção da determinação deste, que, hoje sabemos, ultrapassou todos os obstáculos a ele adrede colocados, até alcançar o triunfo final de sua posse. Alípio Correa Neto, mineiro de Cataguases e presidente inaugural da Associação Médica Brasileira, desejou que o primeiro congresso da entidade médica fosse apoiado com toda a pompa pelo primeiro presidente médico do país. Os mineiros da equipe de Alípio temeram de Kubitschek atitude negativa, denotadora da mágoa que lhe haviam infligido. Ao contrário, o recém-empossado, ao receber a proposta, não só externou atitude inversa, como localizou e buscou, entre eles, Hilton Rocha, para caloroso abraço.
Mais tarde Hilton Rocha foi influenciado por alguns docentes da Faculdade, partidários e colaboradores da ditadura militar, no sentido de usar de seu prestígio para inviabilizar o Internato Rural, que implantávamos como novidade rumorosa do ensino médico. Isso ele teria conseguido facilmente, caso não topasse a surpreendente e firme discordância de dois de seus mais caros correligionários udenistas: Aureliano Chaves e Dario Tavares. Ambos não só apoiaram o Internato como alocaram para sua implantação recursos antes destinados pelos EUA ao controle da natalidade. E os poderosos de Brasília julgaram prudente não enfrentar a temida altivez desses dois.
Três de meus maiores amigos me manifestaram admiradores incondicionais de Hilton Rocha: Ciro Gomide, Caio Manso e Osvaldo Costa. Ciro era dublê de dentista e historiador, sendo o maior biógrafo de Tiradentes no mundo - e veio para zeloso auxiliar de Rocha em aspectos odontológicos da oftalmologia. Caio (mais um sul-mineiro) já era catedrático na Veterinária da UFMG e foi recrutado por Hilton, como pioneiro em fundoscopia canina, para pontificar no biotério do Hospital São Geraldo - só que resolveu estudar medicina humana e conquistou invejável clientela como oculista de gente. Osvaldo Costa, insuperável dermatologista perioftálmico, foi, ao lado do próprio Hilton, a grande atração nas aulas do doutorado deste, sendo ambos queridíssimos dos doutorandos, sobretudo de outros Estados e de outros países. Muito me orgulha ter sido professor de pedagogia médica desse doutorado, vanguarda no país. Ao ser inaugurada a Sala Osvaldo Costa no Centro de Memória, vivi momento único, quando fui orador ao lado de Rocha, de Costa e do convidado especial deste, Camilo Teixeira da Costa. Os presentes foram unânimes em desejar que cada fala se prolongasse indefinidamente – coisa raríssima em matéria de discurso.
Ao longo dos anos, seja como paciente, seja na colaboração em atendimentos, ensino e pesquisa, passei, a admirar, desde cedo e ao lado de outros mais recentes, vários dos integrantes da escola Hilton Rocha: Amélio Bonfiglioli, magistral cirurgião, Ênio Coscarelli, cientista nato, Nassim Calixto, astro internacional em glaucoma, Henderson Almeida, requintado oftalmopediatra, Geraldo Queiroga, somatório de cultura, domínio tecnológico e desempenho profissional, Marcelo Lopes da Costa, erudito conciliador da especialidade com a história da medicina, Emílio Castelar, erudito conciliador da especialidade com o sanitarismo, Lúcio Almeida, completo especialista alicerçado em completa formação médica, Raul Soares e Joel Boteon, finas competências a serviço da relação médico-paciente, Ricardo Guimarães, que me levou ao Anhembi na histórica controvérsia da cirurgia refrativa, e Valênio França, gigante simultâneo em plástica de vias lacrimais e em história da oftalmologia. E é imperioso acrescentar que, em vias lacrimais, a medicina mineira registra um nome áureo, o do inventivo cirurgião Sérgio Donato Valle.
Eu estava no Centro de Memória da Medicina, quando ouço a voz alegre de Ciro Gomide, feliz por estar ali ao lado de Hilton Rocha. Vieram para combinar a aula deste sobre OS GRANDES CEGOS DA HUMANIDADE. Foi a única vez em que tive uma conversa amena com o scholar. Pareceu sentir-se em casa quando eu disse ser seu companheiro na admiração a Gregório Marañón. E mais, revelei-lhe saber serem ele e Pedro Vidigal os únicos possuidores das obras completas do enciclopédico espanhol. Ele então prometeu doar sua coleção ao Centro. Na aula, que foi filmada, ele mostrou que seu talento de orador não se modificara, desde quando, na festa que nos ofereceu na formatura, ele, parafraseando Da Vinci, fez o elogio dos olhos, como JANELA DA ALMA, VITRINE DO CORPO.

domingo, 4 de dezembro de 2011

JOSÉ MARIA VEIGA AZZI E PAULO BARUCH

DOIS SULMINEIROS DA MAIS PURA TRADIÇÃO ABÁSSIDA


João Amílcar Salgado

Passei minha juventude ao som do violino do pai do Zé Maria, de nome Selem Feres Azzi, mas (para nós seus conterrâneos, todos seus amigos e grandes admiradores de sua arte) de apelido Selico. Ao violino, sua aparência não era de árabe, mas de cigano. Cultivava cabelos e bigode boêmios, de grande efeito sobre as mulheres, mas que a mim faziam lembrar Salvador Dali, o pintor catalão, que, por sinal, muito se orgulhava de sua ascendência árabe.

O pai Selico e a mãe (Maria Veiga Lima, de apelido Veiguinha), do José, reviveram em Nepomuceno o romance de um arrebatado violinista e uma linda estudante de medicina vivido pelo romeno/búlgaro/grego Georges Boulanger e a russa Ellionorr Paulson. Quando Boulanger viveu no Brasil, em 1948, influiu no repertório do Selico, que passou a um mix de música cigana, folclore balcânico e valsas vienenses. E, para gáudio dos conterrâneos, a Veiguinha era culta e também musicista. Formou com o marido um duo célebre e, depois com os filhos, um conjunto mais famoso ainda. Minha afeição à Veiguinha tem um componente a mais: ela foi aluna de meu pai e o descreveu para mim, em depoimento precioso, de como era como professor, no breve tempo em que deu aula de ciências, matemática e português, no colégio presbiteriano de Nepomuceno.

Na última vez que conversei com a viúva Veiguinha, propus a ela matarmos a saudade do Selico, sob os acordes da canção de Boulanger intitulada AVANT DE MOURIR. Os norteamericanos se apropriaram dela e mudaram-lhe o nome para MY PRAYER, que, cantada por THE PLATTERS, foi dançada por toda a nossa geração, nos anos dourados. Aliás o Zé Maria Veiga Azzi lembra que outra apropriação ianque ocorreu com a canção francesa COMME D'HABITUDE que fez sucesso nas vozes de Paul Anka e Frank Sinatra, cantada com o título deMY WAY. A Mireille Mathieu e o Vinício Tiso a cantam na versão original. Segundo o Zé Maria, outra apropriação - esta verdadeiro estelionato musical - se deu com a canção brasileira ONTEM AO LUAR, composta por Pedro de Alcântara, em 1907, e aproveitada para trilha musical do filme LOVE STORY (este, por sua vez, apropriado de Shakespeare). O maior violonista clássico brasileiro Antônio Carlos Barbosa Lima quase foi obrigado, em Nova Iorque, a pagar direito autoral ao estelionatário.

José Maria Veiga Azzi e Paulo Baruch graduaram-se em medicina na turma de 1967 da Universidade Federal de Minas Gerais. Dão-me a honra de se auto-intitularem jocosamente meus discípulos, mais pelas caraminholas que coloquei na cabeça deles ao longo dos seis anos de curso. Não apenas estes dois, mais ligados a mim por serem sulmineiros, mas toda a turma se distinguia por uma característica que se vai rareando: eram estudantes com sincero interesse pelo paciente. Em outros termos, sua formação, fundamente marcada pelo ensino da semiologia galizzeana, foi particularmente centrada na relação médico-paciente. Basta ver a estatura profissional dos médicos em que aqueles alunos se transformaram para a confirmação desse fato.

A ascendência árabe do Paulo e do José é coerente com a projeção de ambos como médicos. Todo o lado bom da medicina ocidental moderna vem de pequeno fato histórico referido no livro A HISTÓRIA DA DISPEPSIA E A DISPEPSIA NA HISTÓRIA, do qual sou co-autor: o alívio da atribulação dispéptica do califa Al-Mansur, fundador da dinastia abássida no império árabe medieval. Daí chegou à Europa a medicina hipocrática, em sua avançada versão alexandrino-nestoriana. Tradição tão alta é honrada em Minas Gerais e principalmente no Sul de Minas por magnífica plêiade de médicos de linhagem árabe.

Quando conheci o Paulinho, ele me causou admiração, quando, por brincadeira, perguntei-lhe qual o parentesco dele com o Spinosa. Ele não só demonstrou conhecer coisas surpreendentes sobre o pensamento deste filósofo como observou que, sendo libanês, não podia ser parente do judeu Spinosa. E me explicou que Spinosa não nasceu na Holanda como dizem os livros, mas em Portugal, e que Baruch em hebraico e em árabe quer dizer Benedito ou Bento. Daí que um é Benedito Spinosa e outro é Paulo Benedito ou Paulo Bento. Curiosamente, quando jovem o Paulinho era muito parecido com o profeta homônimo de Congonhas e, na festa do trote, houve quem sugerisse que ele comparecesse ao desfile dos calouros com o turbante, as botas e a demais vestimenta da escultura – o que afinal não aconteceu. O Paulinho e eu agora estudamos dois outros judeus portugueses, um médico e um pintor: Francisco Sanches (de quem Descartes copiou o cogito) e Silva Velásquez (que muitos consideram erradamente andaluz).

Data daqueles anos iniciais a dupla dimensão humana do Paulo. Na medida em que se transformava no médico fino e completo que veio a ser, nunca deixou de cultivar o lado meditativo de sua rara inteligência. A preocupação com os descaminhos da humanidade e com a solidariedade humana rendeu-lhe sólida cultura, que procura esconder, mas não consegue. A leitura de meu livro O RISO DOURADO DA VILA serviu-lhe de estímulo e de desafio para que também registre suas memórias – nas quais os amigos esperam ler aqueles acontecimentos que só acontecem pelos lados de sua terra.

Já o Zé Maria, não bastando sua plena formação clínica, veio a ser rematado cirurgião. Costumo dar o exemplo de dois médicos do Sul de Minas, Geraldo Alves Coutinho, de Ouro Fino, e José Maria Veiga Azzi, de Nepomuceno, cuja habilidade cirúrgica é tão excepcional que se aproxima do desempenho artístico. Ambos decidiram não ficar na Universidade, onde se teriam notabilizado sem a menor dúvida. E foram exercer a profissão em cidades do interior, em cujo ambiente regional foi inevitável que se tornassem heróis e ídolos. E o Zé Maria prima por colocar seu lavor estético não só na cirurgia, mas, com idêntico esmero, o repassa à execução musical, seja como instrumentista, seja como arranjador e maestro.

Guardo com carinho as imagens e o som, captados pelo “cineasta” Dácio Moreira, pelos quais, naquele delicioso encontro de colegas na casa do Paulinho, o José Maria executa, em homenagem a Nepomuceno e a mim – e também a seus pais – o bolero ESMAGANDO ROSAS, obrigatório em todos os bailes de nossa juventude.

O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina na Universidade Federal de Minas Gerais.