sábado, 18 de dezembro de 2010

A SAÚDE E A EDUCAÇÃO NO GOVERNO DILMA

João Amílcar Salgado

O ministro da saúde Temporão e o ministro da educação Hadad do governo Lula – por terem sido tão trapalhões em áreas tão sérias - deveriam ser substituídos por gente mais competente, no novo governo Dilma. De todo o ministério, são os dois mais difíceis de substituir, pois – por mais trapalhões que tenham sido – se mostraram ambos muito bem acomodados aos interesses mercantis ligados tanto à saúde como à educação.

Aos estrategistas de Dilma, a questão desde cedo foi a seguinte: é necessário substituir os dois, mas como encontrar dois substitutos que - no afã de serem menos trapalhões - não acarretem o risco de contrariar os interesses mercantis ligados à saúde e à educação, de tal modo que acabem engendrando duas crises graves no início de um governo, cuja prioridade é transparecer paz e amor?

A partir da ditadura 64-84, os sucessivos governos cevaram seis monstros, que passaram a ser monstros quando perceberam que estavam sendo tratados ou com incompetência, ou com medo ou com promiscuidade ou com a mistura de tudo isso. São as indústrias do pré-pagamento em saúde, do ensino mega-lucrativo, do narcotráfico, da corrupção nos três poderes, do sistema bancário e do desmatamento – que são seis indústrias freqüentemente sócias umas das outras.

No caso da saúde, a incompatibilidade de um sistema único com um PARA-SISTEMA PSEUDO-SUPLEMENTAR, mas que de fato é COMPLEMENTAR, exigiria um ministro-estadista, acompanhado de equipe de mesmo nível, encarregado de solucionar tão gigantesca aberração institucional, com mega-interesses já fortemente estabelecidos.

No caso da educação, está clara a incompatibilidade entre, de um lado, a busca obsessiva em criar um sistema de avaliação educacional, ostensivamente apenas quantitativo, e, de outro lado, a avidez por uma educação de verdade, inescapavelmente qualitativa, manifestada por camadas cada vez maiores da gigantesca população recém-incluída na renda nacional. Isso exigiria bem mais do que um simples Hadad, à frente de equipe mil vezes melhor. A compatibilidade da MÁQUINA DE AVALIAR com O QUÊ AVALIAR seria menos difícil há trinta anos, mas hoje, com os mega-interesses da indústria-do-lucro-fácil em educação, a tarefa é também para estadista. Quem correria esse risco?

Sobre os quatro outros monstros algo semelhante poderíamos dizer. Em vez de falar sobre eles, quero relembrar aqui o texto SAÚDE E EDUCAÇÃO NO GOVERNO LULA que publiquei no tablóide CAROS AMIGOS, por ocasião da posse de Lula em seu primeiro governo:

“Depois de três meses do início de seu governo [março de 2003], Lula vai fazer cinco perguntas a seu ministro da saúde e cinco perguntas a seu ministro da educação.

Ao da saúde:

1. O dinheiro da saúde continua escasso e sendo gasto para remunerar mal os que se esforçam para manter os doentes em pé, enquanto sobra para remunerar bem os que lucram com seu decúbito – e apenas com o decúbito lucrativo?

2. O atendimento oferecido no nível periférico continua sem avaliação ou com avaliação apenas quantitativa? Se continua assim, quando haverá o rigor desejável em verificar a resolubilidade de cada nível, sem distinção?

3. A Constituição continua sendo desrespeitada em relação aos chamados planos de saúde, ou seja, continuam legitimados pelo cínico artifício de chamá-los de planos e, pior, de planos de saúde, e, pior ainda, de assistência complementar?

4. O controle social do atendimento continua sendo usurpado por ilegítimo colegiado de secretários, em detrimento dos conselhos municipais, estaduais e nacional, reorganizados com a representação desta vez legítima?

5. As denúncias de desatendimento e de escândalos continuam sendo amenizadas ou apagadas do noticiário pelo recurso a artifícios de marketing, custeado pelo orçamento da própria saúde?

Ao ministro da educação as perguntas serão as seguintes:

1. A expansão da educação brasileira continua entregue ao gangsterismo educacional, isto é, a compreensível sede de ascensão social pela escada do diploma continua mercadejada na bacia-das-almas do enriquecimento fácil?

2. O ministro continua iludindo a gigantesca clientela escolar, fazendo parecer que avaliações de fachada são o antídoto mágico para a ostensiva falta de escrúpulos do a-sistema vigente?

3. O que restou do anterior sistema público – da pré-escola ao pós-doutorado – continua sendo tratado a pão-e-água, com vil remuneração docente, enquanto subsídios diretos e indiretos continuam sendo facilmente distribuídos a escolas privadas e a falsas instituições não-lucrativas?

4. Os conselhos municipais, estaduais e nacional continuam submetidos a obscuros critérios de barganha política, de tal modo que permanecem sob o controle dos industriais da educação?

5. As denúncias de distorções e descalabros continuam amenizadas ou apagadas do noticiário pelo uso de artifícios de marketing custeados pelo orçamento da própria educação?

Em acréscimo a essas dez perguntas, podemos formular mais uma, que muito bem representa o compromisso conjunto para com a saúde e a educação: o novo governo continua tratando mal os hospitais universitários?

O hospital universitário é o ponto culminante da solidariedade entre saúde e educação. Assim, serve como indicador ideal da seriedade com que ambas são tratadas. Para melhor explicitar tal responsabilidade, podemos desdobrar a pergunta em três questões dela derivadas: a) os hospitais universitários continuam sendo tratados como entidades pedintes, a serem atendidas com sobras ou gambiarras orçamentárias?; b) continuam objeto de jogo-de-empurra entre os dois ministérios respectivos?; e c) continuam obrigados a disputar sua renda própria no mercado distorcido e selvagem?

Tais interrogações são apropriadas e oportunas neste início de administração, porque o colorido dramático do caos diário na saúde, mais visível do que o semelhante na educação, parece apalermar os mais diligentes administradores. De fato, o custo em dor e morte é tal que mesmo a inegável competência de alguns de nossos técnicos se vê dispersa e desgastada pelo varejo de remendos a esmo. Assim, nada justifica qualquer demora na tomada de decisões corajosas e responsáveis.

SUGERIMOS AOS DOIS MINISTROS QUE TENTEM RESPONDER A ESTAS PERGUNTAS A CADA FINAL DE SEMANA” [Insisto: isso foi em março de 2003].

Diante do relatado acima, pode-se deduzir que Lula foi muito esperto em seus oito anos de governo. Avaliou a dimensão dos monstros, na época já enormes, já que foram muito bem cevados no hediondo governo FHC. Decidiu então governar pelas brechas que genialmente vislumbrou entre as poderosas patas dos mesmos. Se os contrariasse, não haveria governabilidade. Foi muito bem sucedido com essa saída. Tanto que se tornou O CARA. Acontece que deixou de herança para a Dilma os mesmos monstros, mais cevados ainda. Daí a dificuldade que ela já está tendo, especialmente na saúde e na educação - e que já ficou demonstrada na incapacidade para substituir Hadad e no medo de nomear Ciro Gomes para a Saúde.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

SOBRE A PROIBIÇÃO DA VENDA LIVRE DE ANTIBIÓTICOS - OU DE COMO PROTEGER OS QUE LUCRAM COM A AUTOMEDICAÇÃO

João Amílcar Salgado

Está em vigor desde 29/11/10 a restrição à venda de antibióticos e outros antimicrobianos (Resolução 44/10 da ANVISA), que consiste na retenção de uma via da receita médica e a anotação dos nomes do médico, do paciente e do medicamento, bem como a quantidade deste.

Tal restrição, nas circunstâncias em que é promulgada, revela a hipocrisia dos atuais responsáveis pela ANVISA

Em primeiro lugar, a venda livre de antibióticos e outros antimicrobianos já estava proibida e nada vinha acontecendo aos que, a cada dia e a cada hora, desrespeitavam o impedimento. Agora decretam uma proibição repetitiva, com pretexto de dificultar a transgressão. Ora, isso significa concordar com esta, não passando de um escape gesticulativo, equivalente a trancar uma porta já arrombada.

Em segundo lugar, nenhuma medida contra algum tipo de automedicação terá credibilidade no Brasil, enquanto a própria ANVISA autoriza genericamente a automedicação – autorização esta que é acobertada pelo silêncio cúmplice do CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, do CONSELHO FEDERAL DE FARMÁCIA, da ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA e de demais instancias responsáveis.

Assim, a ANVISA, como agência fiscalizadora, se autodesmoraliza o tempo todo, quando, com aquela proibição específica e esta autorização contraditória, é tolerante com gravíssimo risco à saúde. E o pior é que tão grande risco decorre de criminosa indulgência para com a cobiça financeira da indústria farmacêutica. Tudo isso retrata inominável irresponsabilidade governamental.

O médico acaba arrastado, como cúmplice forçado, em tal descalabro. Para avivar os contornos do ultraje em que o médico é aí envolvido, transcrevo a denúncia contra a mais renitente das propagandas de automedicação, disseminada por todas as modalidades de mídia.

Em 16 de dezembro de 2001, submeti a seguinte denúncia ao Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais

Ilmos. Srs. Membros do Plenário do Conselho

Na qualidade de médico, professor de medicina e cidadão deste Estado de Minas Gerais, sinto-me no direito e no dever de, respeitosamente, solicitar informação a este plenário sobre anúncios publicitários que passaram a ser veiculados em nossos canais de televisão. Trata-se de propaganda de medicamentos que termina por apresentar a seguinte advertência ou equivalente: A PERSISTIREM OS SINTOMAS SEU MÉDICO DEVERÁ SER CONSULTADO.

A menos que a automedicação já esteja tacitamente aceita pelas entidades médicas e, pior que isso, autorizada a ser incentivada por meios publicitários – solicito ser informado oficialmente quais as medidas que este Conselho tomou ou está tomando diante do fato, que suponho seja do conhecimento de cada membro deste plenário.

Pedindo desculpas pela indignação que está por trás desta solicitação, apresento os protestos de minha mais alta consideração e de minha firme confiança na preservação dos princípios fundamentais da ética de nossa profissão, acima de quaisquer interesses mercantis. Atenciosamente, João Amílcar Salgado.

Infelizmente não tive conhecimento de que esta denúncia tenha sido apreciada pelo plenário do Conselho. Com o prosseguimento impune da propaganda denunciada expressei minha indignação no III Congresso Mineiro de História da Medicina (28-30/09/06) em texto com clara advertência sobre o caos progressivo da saúde e da educação, intitulado DURAS VERDADES SOBRE SAÚDE E EDUCAÇÃO. Desse documento, o primeiro tópico traz o seguinte subtítulo: AO-PERSISTIREM-OS-SINTOMAS É UMA BOFETADA HISTÓRICA NA DIGNIDADE PROFISSIONAL DO MÉDICO.

Nele manifesto minha repulsa à dupla agressão com que somos atingidos diariamente, decorrente de ostensivo apelo à automedicação, que se completa em acintoso e cínico lembrete: ao persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado. E concluo: A vigilância sanitária, os ministérios da saúde e das comunicações, bem como as entidades médicas e dos farmacêuticos são, portanto, inescapáveis co-réus deste duplo crime. Duplo por que? Não contente em pôr em risco a população pelo incitamento à automedicação, o anunciante constrange os médicos, e à própria revelia destes, a passivos cúmplices e a humilhados legitimadores de tão infame e perversa gana consumista.

sábado, 27 de novembro de 2010

SOBRENOMES MATRICIAIS DE LAVRAS E NEPOMUCENO

João Amílcar Salgado

AS FAMÍLIAS COSTA, PÁDUA E SALES de Lavras têm origem nos três filhos do luso MANOEL COSTA VALE, que, no Brasil, se casou com MARIA DO ROSÁRIO PEDROSO DE MORAIS, de tradicional tronco bandeirante. São eles: ANTÔNIO DE PÁDUA SILVA LEITE, FRANCISCO JOSÉ COSTA e o capitão MANOEL JOAQUIM COSTA. Do enlace entre descendentes dos dois primeiros surgiram tanto os Pádua como os Sales, sendo que deles descende o educador, filólogo e historiador Firmino Costa, autor dos presentes dados. Demais, dos dois primeiros descende o tenente coronel FRANCISCO ANTÔNIO SALES, que se matrimoniou na renomada família RIBEIRO-DE-OLIVEIRA-PENA de Entre-Rios de Minas, por meio de sua esposa ANA FELIZARDA RIBEIRO DE OLIVEIRA, sendo ambos avós de Francisco Antônio Sales (1873-1933), que foi Prefeito de Belo Horizonte, Governador de Minas Gerais, Senador e Ministro da Fazenda.

O terceiro filho do casal Manoel Costa Vale e Maria Pedroso-de-Morais é o capitão MANOEL JOAQUIM COSTA, que se casou (em segundas núpcias) com MARIA DE SOUZA MONTEIRO. Uma dos nove filhos desse casamento, Maria de Souza Monteiro Costa, se casou na família Lima, por meio de seu esposo José Antonio de Lima, apelidado de Casaquinha. Dos referidos nove filhos, o de maior significado histórico, por seu casamento e sua descendência, é o capitão VICENTE MARTINS FERREIRA DA COSTA (1805-79). Ele também se casou na família Ribeiro-de-Oliveira-Pena de Entre-Rios de Minas, do mesmo modo que seu antes citado primo tenente-coronel Francisco Antônio Sales. Se este se casou com Ana Felizarda, o capitão Vicente se casou com a irmã desta, MARIA RITA RIBEIRO DE OLIVEIRA.

Do casal Vicente e Maria Rita, nasceram 18 filhos, dos quais onze se tornaram adultos. Destes onze, três se casaram na família Lima: Ana Idalina (com José de Lima), Maria da Conceição (com Francisco Lima) e José Augusto (com Mariana Corrêa Lima). Nas gerações seguintes, a maior parte dos descendentes se matrimoniou com portadores do sobrenome Lima, em meio a alto grau de consangüinidade. Entre tais descendentes, predominou a tendência em não insistir com os sobrenomes anteriores: VALE, LEITE, PEDROSO, MORAIS, MONTEIRO, BOTELHO, MARTINS, FERREIRA, SILVA E PENA. O sobrenome correto RIBEIRO DE OLIVEIRA COSTA às vezes é substituído por Ribeiro Lima, em virtude da forte presença Lima entre os descendentes. No ramo Ribeiro de Oliveira Costa sobressaem o Governador do Estado da Guanabara, Ministro e Embaixador Francisco Negrão de Lima, bem como os Prefeitos de Belo Horizonte Otacílio Negrão de Lima e João Pimenta da Veiga Filho.

Vale lembrar que o sobrenome Pádua passou de prenome a sobrenome provavelmente como maneira de enfatizar a relação de parentesco da família com os Bulhões Taveira. Este ramo muito se orgulha do parentesco com o extraordinário pregador Santo Antõnio. Ele é cognominado Santo Antônio de Pádua (localidade italiana onde adquiriu imediata devoção, sendo o santo de mais rápida canonização) mas é denominado também Santo Antônio de Lisboa (cidade onde nasceu). Assim, é fácil compreender que Santo Antõnio fosse homenageado por meio do nome de um dos três filhos do casal Manoel Costa / Maria Pedroso. Já o nome Sales resultou da homenagem, por meio do nome de um dos netos deste mesmo casal, feita não a um, mas a dois santos ao mesmo tempo: Santo Antônio e São Francisco de Sales, sendo este de devoção entre os que aspiravam à reconversão de protestantes ao catolicismo.

Também não se pode esquecer que, ao lado daquele ramo Lima que se ligou predominantemente à família Ribeiro de Oliveira Costa, a família Lima já era importante no povoado de Nepomuceno, inclusive em ligação com os Garcia, os Figueiredo e os Vilela. Daí resultaram os dois únicos barões do império nascidos em Nepomuceno: Gabriel Garcia de Figueiredo – Barão de Monte-Santo, nascido em 1816, e José Caetano de Lima – Barão de Mogi-Guaçu, nascido em 1821 e primo do primeiro – ambos migrados de Nepomuceno para a região das atuais cidades de Mococa e Casa Branca, no Estado de São Paulo.

Em Nepomuceno, sobrenomes ligados ao tronco Costa-Pádua-Sales-Ribeiro de Oliveira são: Ribeiro, Sales, Lima, Lima Pádua, Lima Costa, Lima Rabelo, Ribeiro Lima, Corrêa Lima, Cambraia Lima, Oliveira Lima, Garcia Lima, Veiga Lima, Barbosa Lima, Vilela Lima, Lima Salgado, Cardoso Vilela, Vilela Teixeira, Vilela Salgado, Teófilo Salgado, Salgado Lourençoni, Salgado Andrade, Augusto Lourenção, Flávio Pimenta e Veiga Sales.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

COM HADDAD E TEMPORÃO, DILMA NÃO PRECISA DE INIMIGOS

EM NOVEMBRO DE 2009 PUBLICAMOS O TEXTO A SEGUIR E, AGORA, UM ANO APÓS, EM OUTRO EXAME DO ENEM, A COISA SE REPETE!. QUERO RESSALTAR QUE NÃO VOTEI CONTRA A DILMA. MINHA QUESTÃO SÃO A EDUCAÇÃO E A SAÚDE, EXATAMENTE AS DUAS ÁREAS EM QUE SOU ESPECIALISTA. COM ESSES DOIS MINISTROS, A DILMA NÃO PRECISA DE INIMIGOS! NINGUÉM PERCEBE?

EM MEIO A MEGA-DESASTRES, NAVEGA NOSSA NAU DOS INSENSATOS, COM A SAÚDE E A EDUCAÇÃO A BORDO

Quanto mais bem sucedido vem sendo o atual governo na melhoria da distribuição de renda no país, mais escandaloso é seu fracasso em saúde e educação. Em meio a mega-desastres aéreos e à violência crescente, ninguém está dedicando atenção a nosso risco como passageiros desta verdadeira nau dos insensatos,capitaneada pelos ministros da saúde e da educação.

É ledo engano pensar que uma boa notícia, como o anúncio do pré-sal ou o reconhecimento do BRIC, seja capaz de compensar a derrocada na saúde e na educação. Tais boas-novas desviam a atenção, anestesia dores menores, produz refresco breve – mas as duas feridas largas e profundas, da saúde e da educação, prosseguem subsistentes. Já as más notícias, principalmente a péssima notícia, como de três mega-desastres aéreos recentes ou da violência endemo-pandêmica, podem aprofundar a anestesia, mas seu efeito é igualmente temporário.

E os próprios respectivos setores governamentais se encarregam de reacender, rápido, o ferro-em-brasa da débâcle na educação e na saúde. Isso acontece quando, de modo trapalhão, tentam melhorar as coisas, mas acabam piorando tudo e fazendo tudo ficar irreversível. Por exemplo, no hemisfério norte, tenta-se responder ao craque imobiliário com duras medidas não só contra a farra de contas em paraísos fiscais, de lucros, de salários e despreads, mas também contra a cultura da irresponsabilidade ou contra os dispositivos controladores cevados na promiscuidade explícita com os controlados. Enquanto isso, aqui tudo prossegue como-dantes-no-quartel-de-abrantes – com farra análoga, só que maior, com a mesma cultura, só que ao jeitinho brasileiro, e com igual promiscuidade, só que muito mais cínica.

Na educação, acabam de transformar o ENEM (herança maldita do fiasco do provão) num arremedo de “exame vestibular nacional”, no qual qualquer cultor do óbvio é capaz de reconhecer autêntico vôo-cego de aprendizes-de-feiticeiro. Este pseudo-vestibular nacional, chega para ser um requinte a mais na desbragada mercantilização do ensino superior. Nesta se inclui a imensa insensatez da explosão de faculdades picaretas de medicina, e, para maior horror, o vergonhoso colapso do ensino público pré-universitário, estando as nossas antigas escolas primárias à mercê de gangues de pivetes e de livros didáticos alegremente obscenos. Intrínseco a isso, no ensino superior público, o mencionado neo-liberalismo farrista causou e causa o sucateamento físico, docente e moral das universidades - sendo este último só agora noticiado, com vários reitores deslocados, na mídia, das páginas de ciência para as páginas policiais. E, para coroar o descalabro, assistimos atônitos à avassaladora aventura do ensino-à-distância, com todo seu claríssimo potencial de fraude e corrupção. Tanto este como o ENEM e o ENADE estão sendo empurrados goela-abaixo das universidades públicas, a poder de coação e até de chantagem.

Na saúde, somos obrigados a assistir deprimente competição diária por estacionamento, quando as ambulâncias municipais, recém-chegadas de cada cidade do Estado, disputam espaço para descarregar casos não-resolvidos no Hospital das Clínicas. Na outra ponta, nos postos de saúde metropolitanos, prossegue, a cada minuto, o confrangedor desfile de dor, pranto, morte e tumulto nas filas de atendimento. Ao mesmo tempo, os “planos de saúde”, que não são planos e nem são de saúde, faturam milhões e milhões. E não constituem nenhuma assistência suplementar ao SUS, mas sim dispositivos de fato complementares, que estão aderidos ao SUS num abraço letal. Os assessores ministeriais, arrasados por tanta incompetência, paradoxalmente se animam diante das últimas ameaças de epidemia ou se assanham no afã de uma campanha contra isso ou aquilo - na esperança de poder parecer que, pelo menos nesta ou naquela questão conjuntural, se estão saindo bem ou menos mal (mas estão muito mal nos escândalos cumulativos do tamiflu restrito a grupo de risco, do atraso da vacina antigripal e do diagnóstico específico da gripe suína limitado a três centros). Ou então anunciam, como se fosse grande achado inovador, a proibição da auto-medicação com elixir paregórico, com formol ou com antibióticos ou ainda do banho ultravioleta, escondendo do público que qualquer restrição à cobiça infinita da industria de saúde é feita de comum acordo com ela própria, sob a alegação neoliberal de procurar não ofender o mercado.

E, para fechar com chave-de-ouro esse tour maldito de insensatezes, se aferram, com cega obstinação, àquilo que considero a maior cara-de-pau da histórica da medicina. É quando fazem o alerta solene de que, caso algo dê errado, caso o problema persista, que o cidadão procure um médico. De preferência um médico despreparado, formado numa faculdade picareta, que eles próprios acabaram de autorizar

* * *

E O MINISTRO NÃO RENUNCIOU!

O principal do texto acima saiu em meu blogue (jamilcarsalgado.blogspot.com) em 22 de junho de 2009. Diante do que está dito aí, os amigos perguntaram: se isso é fato, será que vai estourar algum escândalo produzido por tanta insensatez? E não é que, no dia 1º de outubro de 2009, a imprensa denuncia a fraude do ENEM, levando à suspensão do pretenso vestibular? A partir daí recebi muitos cumprimentos (sem qualquer alegria minha) pela profecia de junho. Mas o maior escândalo não é a fraude. O maior escândalo é que o MINISTRO NÃO RENUNCIOU. E continua a se exibir na mídia como se a coisa nada tenha a ver com ele! E NINGUÉM ESTÁ EXIGINDO A SUA RENUNCIA!

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

SEBASTIÃO NATANIEL SILVA GUSMÃO

SEBASTIÃO NATANIEL SILVA GUSMÃO

De talentoso nauta de improváveis travessias aos postos máximos da neurocirurgia brasileira e da carreira universitária

João Amílcar Salgado

De todos os extraordinários feitos que eu poderia enumerar como cometidos pelo médico, neurocirurgião, cientista, professor, historiador, inventor e escritor Sebastião Gusmão, prefiro me restringir ao sobredito, ou seja, que ele é em essência um talentoso nauta de improváveis travessias. Sim, sou testemunha de que ele fez heróicas intervenções neurocirúrgicas, coordenou o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de História da Medicina, inventou aparelho de vivissecção terapêutica do encéfalo, escreveu oito livros, além de três em redação, assumiu há pouco o posto máximo de presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia e assume hoje o posto máximo da carreira universitária, que é o de professor titular de Cirurgia da Universidade Federal de Minas Gerais.

Prefiro, repito, enaltece-lo não por tantas dessas altas e nobres realizações, mas por incríveis diagonais subjetivas e objetivas, vislumbradas por mim em sua originalíssima biografia.

A primeira travessia ocorreu quando emergiu do ventre materno para a luz benfazeja de sua querida cidade de Itamarandiba. O inusitado aí não foi o parto, multíparo que era, mas de ter sido por mão de douto em vez de parteira. Na pequena agenda de Afonso Pavie está lá escrito: hoje fiz o parto da dona Nely, nasceu forte menino que receberá o nome de Sebastião. Isso ligou umbilicalmente o nascituro à França de Pavie.

A segunda travessia consistiu em passar pela ponte estreita entre as linhagens materna e paterna de sacerdotes, ambas pontilhadas de ilustres religiosos, inclusive bispos e cardeal. Pesou mais o lado paterno, atraído à desabusada amplitude intelectual, característica dos Gusmão, comprovada ao longo de séculos. Desde algum Gute Mann godo, até os Bartolomeu, Alexandre, Domingos, Xanana, Abimael e Rivadavia. Amplitude que se desborda mais pela ciência do que pela fé, mais pelo ativismo político do que pelo fervor apostolar, mais pelo cosmopolitismo do que pelo nativismo e mais pelo ecumenismo do que pelo sectarismo.

Mesmo antes de chegar à Capital, protagonizou inédita diagonal dentro da cultura mineira. De Itamarandiba a Pouso Alegre, descobriu as muitas Minas Gerais como realidade una. Era a antecipação do encontro entre dois fraternos amigos, ele e eu, sulmineiro que sou.

A passagem estreita do exame vestibular o conduziu ao contato iniciático com o cadáver. Ele não sabia, mas, na primeira vez em que seu bisturi feriu aquele corpo sem vida, já havia ali a marca da mão cirúrgica do futuro profissional, a qual, no entanto, principalmente em seu caso, era antes de tudo rara mão anatômica - que denominei, quando mais rara ainda, mão vesaliana. Eis outro ponto que nos irmana: a anatomia. Minha turma recebeu, em plenos anos dourados, a maior carga horária anatômica jamais oferecida. Daí passei a coligir tais raras mãos, a começar por aquelas de meus privilegiados colegas-de-turma, hoje astros desta arte, e também seus notáveis mestres formais e informais: Sálvio Nunes, Wellerson Lima, Wilson Abrantes e José Sílvio Resende. Recebemos também o primeiro curso específico de neuranatomia, a seguir transformado em disciplina. Estou assim autorizado a reconhecer no anatomista e neurocirurgião Sebastião Gusmão O PRÍNCIPE DA MÃO VESALIANA NEUROCIRÚRGICA BRASILEIRA.

Para completar sua especialização, auspiciosamente iniciada com seu primeiro mestre José Gilberto de Souza, só poderia dirigir-se à pátria de Afonso Pavie, o aristocrata francês que o partejou e que antes fizera a travessia França-Itamarandiba. Nessa contra-travessia Itamarandiba-França, feita por Sebastião Gusmão, consolidou-se um intercâmbio franco-mineiro anteriormente prenunciado por figuras ilustres de nossa historia, a exemplo dos estudantes de medicina mineiros inconfidentes de Montpellier e de Bordeaux, de Saint-Hilaire, Taunay, Renault, Sigaud, Couy, Peret e outros. Para a primeira guerra mundial, em seu final, o Brasil em vez de com soldados contribuiu com médicos, quando no Hôpital Brésilien, adaptado de um convento, impressionaram os de lá com a habilidade cirúrgica (análoga à do futebol e do samba), depois admirada também na América do Norte.

A seguir, no centenário de nascimento de Pasteur, comemorado a partir de 1922, a maquete de nosso Instituto do Radium foi exibida, com elogios, em Estrasburgo. O cirurgião René Leriche, um dos maiores do mundo, foi convidado a Belo Horizonte onde operou no mesmo Instituto. Com isso, as duas maiores expressões da cirurgia francesa, Leriche e Victor Pauchet, um professor em Estrasburgo e outro nascido em Amiens, estabeleceram relações com Minas, o primeiro por meio de Borges da Costa e o segundo por meio de Afonso Pavie, seu conterrâneo, seu ex-colega de curso médico e seu maior amigo. Por sinal, Costa e Pavie, ao lado de Hermenegildo Vilaça, são iniciadores da cirurgia moderna em Minas. Mais tarde, na gastroenterologia, floresceu belo intercambio entre o scolar Henri Sarles, de Marselle, e uma plêiade de médicos mineiros.

Quando Sebastião Gusmão foi especializar-se em Estrasburgo, renovou multiplicadamente essa múltipla ligação entre as medicinas francesa e mineira. E esta foi reforçada por luminosas amizades entre o brasileiro e dois imponentes vultos da neurocirurgia francesa: Daniel Maitrot de Estrasburgo e Pierre Galibert de Amiens – ambos devotados admiradores tanto do amigo como de Minas e do Brasil. Pelo serviço que Gusmão prestou à comunidade de Amiens, revelando-lhe a façanha tropical de Pavie, concederam-lhe o título de Doutor Honoris Causa da Universidade local

Intercâmbio igualmenate incomensuravel estabeleceu Sebastião Gusmão com outro luminar da cirurgia neural, o curdo Mamude Gazi Yasargil. Operando na Suíça, ele criou a microcirurgia encefálica, pelo que foi eleito o homem do século 20 da neurocirurgia mundial. Ele mantém comovente afeição a seu discípulo brasileiro e também à cidade de Ouro Preto. Atualmente, nos EUA, com 85 anos, ainda opera diariamente, mantendo-se ativo graças ao regime de comer maçã a cada meia hora, hábito de seu povo. Palavras semelhantes eu teria para outros amigos ilustres do Sebastião, espalhados pelo mundo, em virtude de um sem número de frutíferas travessias, do Japão às Américas. Todos estejam representados aqui pelo maior especialista em migração lusa ao Brasil, o bracarense Miguel Monteiro, recentemente falecido, a quem ora homenageamos muito saudosos, ainda mais que por certo viria a esta festa.

Nenhuma dessas sumidades, que tive o prêmio de conhecer, graças a meu convívio com o Sebastião, se iguala, no mais fundo de meus sentimentos, a seu pai, o sertanejo Sêo Nozinho, vernaculamente Natan Gusmão. Muito me orgulho de que Sêo Nozinho me tratava não como o intelectual que sou, mas como um dos demais fazendeiros de Itamarandiba, fazendeiro que sou de Nepomuceno. Conquistei-o quando me reconheceu amador igual de muitas das coisas que ele amava. A primeira delas foi a divina leitoa que a dona Nely nos serviu em minha primeira visita. Ela própria fez questão de dizer que meu elogio foi o maior, e garanto justo, que jamais recebera por suas muitas habilidades culinárias. E os causos com que o Sêo Nozinho e eu nos entretínhamos por horas a fio, se escritos, ameaçariam o famigerado autor Guimarães Rosa.

Certa vez cheguei a sua gostosa residência, junto a essa gente tão irmã, e, já no meio daquele abraço de matar saudade, Sêo Nozinho já foi adiantando que lembrara de algo que muito me interessaria. Ele queria contar que seu pai, Herculano, e seu avô, Joaquim, clinicaram como carimbambas naquela região por longos anos, auxiliados por um manual de Chernoviz. Só essa notícia já era fundamental para atestarmos o pendor hereditário do médico Sebastião Gusmão. Mas o que Sêo Nozinho acrescentou foi muito mais impressionante, precioso e significativo. Era que seu avô Joaquim Gusmão acabou sofrendo um derrame e perdeu a fala, mas não a escrita. Sendo ele insubstituível, o povo ficou aliviado quando soube que ele podia continuar atendendo a todos, usando apenas a escrita. Mas Seo Nozinho ressaltou: que os clientes não insistissem para que ele dissesse algo, pois de seu antigo e quase sempre educado vocabulário só lhe restou um palavrão.

E foi então que o Sebastião e eu verificamos que a época desse fato foi a mesma em que o notável neurofisiologista francês Pierre Broca descreveu o local cerebral da fala humana, em um paciente vítima aparente também de um derrame. Se instado a falar, o gaulês emitia sempre um esboço de palavra que ficou eternizada em várias línguas: tantan. Assim o palavrão brasileiro e o tantan relatado por Broca passaram a ser mais uma das misteriosas diagonais traçadas pelo argonauta Gusmão, em sua esplendente vilegiatura pela vida, pela ciência e pela cultura.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

NEPOMUCENO
De como esta cidade está no mapa sentimental de Minas
João Amílcar Salgado
Qualquer observador já se encantava por Minas Gerais mesmo antes de 1700, sobretudo pela paisagem. Após essa data, houve a gradativa sedimentação do espírito mineiro e os visitantes mais ainda se fascinavam, desta vez tanto pela paisagem como pelo modo mineiro de ser. Ainda no século 18, um minerador, depois de viver feliz e enriquecer aqui, concluiu que D. João V, rei de Portugal, seria muito idiota se não transferisse a sede do reino para esta província. O próprio Tiradentes também disse, é claro que pensando em Minas: se todos quisessem, poderíamos fazer do Brasil uma grande Nação.
O medo de isso acontecer fazia tremer aqueles que levavam daqui enorme quantidade de ouro e gemas. Tanto que impediram o acesso de Minas ao Atlântico. Hoje se sabe que, se tivéssemos mar, seria inevitável nossa independência, muito antes de 1822. Já no século 19, um engenheiro inglês, depois de percorrer Minas Gerais, propôs que o Império Britânico usasse de seu poderio para anexar a seus domínios esta encantadora região. Curiosamente acrescentou que, caso isso fosse feito, os novos donos teriam muito trabalho em moldar o jeito tranqüilo de nossa gente ao estilo enérgico necessário à exploração de tão maravilhosas riquezas.
Estudo o fato de que a cultura mineira contém virtudes únicas que a fazem ultrapassar generosamente as fronteiras de nosso Estado. Por outro lado, o GRANDE SUL DE MINAS compreende as águas vertentes descidas do norte até o Rio Grande e ao mesmo tempo engloba toda a chamada Zona da Mata Mineira. Quem forçou a Zona da Mata a separar-se do Sul de Minas foi gente traidora de Minas. Isso acabou inibindo a precedência juizforana na industrialização brasileira, inclusive causando a localização fora de Minas da usina de Volta Redonda, a primeira siderúrgica do país. E, para que esta produzisse aço, cinicamente vinham buscar o minério em Minas.
Todo esse preâmbulo é para ressaltar os privilégios de Nepomuceno, localizada a igual distancia dos três maiores centros metropolitanos, no coração da área mais desenvolvida do país. E estamos vivendo um tempo em que o Brasil, apesar de muitos obstáculos, está em vias de se tornar a quinta nação mais rica do mundo, como profetizou o estadista Tiradentes, há 220 anos atrás. Além dessa singularidade geopolítica, contamos com inestimável privilégio histórico. Nepomuceno situa-se bem perto da Estrada Real, tanto é que a rodovia Fernão Dias, quando ainda era de terra, passava por aqui, contornando a igreja Matriz, subia a Rua Rubem Ribeiro e saía pela Rua Ana Idalina. Esse caminho, entre a cidade de Parati e Sabará, foi chamado de Caminho Velho e foi usado de 1674 até 1710, quando, para o escoamento do ouro, foi substituído pelo Caminho Novo, entre o Rio de Janeiro e Vila Rica. Antes, entretanto, de 1710, o Caminho Velho já era uma rede de caminhos e o trecho próximo a Nepomuceno passou a ser cada vez menos usado, pois os viajantes passaram a desviar-se na hoje cidade de Cruzília em direção a São João Del Rei.
Depois de 1710, havendo menos pressa para chegar ao ouro de Sabará e Vila Rica, caçadores de ouro, entre eles os próprios parentes de Fernão Dias, apelidados de os Bueno da Fonseca, esquadrinharam o Caminho Velho. Acharam, pouco antes de 1737, boa quantidade de ouro nas imediações de um afunilamento das águas do Rio Grande e ali passaram a lavrar essa riqueza. O lugar passou a ser chamado de Lavras do Funil e nesse funil foi construída, há pouco tempo, uma usina hidrelétrica.
É claro que também deduziram haver ouro nos afluentes do Rio Grande, nas imediações do garimpo inicial, e uma das lavras foi estabelecida no rio do Cervo, entre as pedras de uma corredeira hoje chamada Banho - que pode designar tanto banho de gente como banho de cascalho. Um dos que mais tarde ainda lucraram com o ouro dali pode ter sido um mulato hábil no trato desse metal, chamado João Inácio Dias, que passou a residir no povoado próximo ao Banho. O povoado veio a ser a cidade de Nepomuceno e nele surgiu a Rua Nova onde eram encontrados os artífices do lugar: carpinteiro, tintureiro, músico, ferreiro, ourives, barbeiro, alfaiate, açougueiro, padeiro e outros. Hoje a Rua Nova tem o nome do ourives João Inácio Dias, de quem descende uma das mais queridas famílias nepomucenenses.
Quando eu era criança e passava as férias na Trumbuca, achei debaixo de enorme pé de jatobá, que declarei ser meu, vários instrumentos de pedra dos antigos índios. Maravilhado e sentado naquela sombra, ficava a imaginar como era a vida deles ali antes da chegada dos portugueses ao Brasil. Mais tarde fui visitar o local onde existiu o quilombo da Bárbara e passei a estudar seu povo, especialmente seu último líder, o Lolão. Hoje investigo os demais quilombos: Retiro, Calunga e Bacia, que seriam quilombos-sentinelas do grande Quilombo do Cascalho, entrincheirado na Serra das Três Pontas. Os índios daqui (cataguás?, puris?, caiapós?, cambuavas?, garanguis? trumbucas?) e os quilombolas foram os primeiros e mais autênticos nepomucenenses. É nosso dever levantar o máximo possível de sua história, inclusive a violência de que foram vitimas. Alguns nomes de lugares que retratam esse passado são cheios de poesia, de sugestões, ou de interrogações: Ermo, Contendas, Vinte-Horas, Quatis, Morembá, Repolho, Cabeças, Arranca-Rabicho, Limeira, Paineiras, Coqueiros, Pinhal, Piraquara, Bocaina, Esmeril, Cascavel, Carrapato, Queima-Capote, Desidério, Sapé, e Sapecado.
Antes da chegada das plantações de café a Nepomuceno, a economia girava em torno da produção vegetativa de madeira, gado, banha, açúcar e cachaça. Como tudo era de baixa produtividade, as fazendas tinham de ser muito grandes para acudir famílias de muitos filhos. No início, os casamentos entre primos e até entre tios e sobrinhos amenizavam a redução das propriedades. Mas, no século 19, foi inevitável a diáspora de herdeiros que se dirigiram ao oeste, onde era possível a posse gratuita de terras e o desenvolvimento, com pouco capital, de novas fazendas gigantes. Daí que as famílias iniciais de Nepomuceno e região hoje contam com parentes no oeste de Minas, no Triângulo, no noroeste paulista, em Goiás e em Mato Grosso. Por exemplo, fundadores das cidades mineiras de Uberlândia e Ituiutaba, bem como da cidade goiana de Mineiros, são relacionados à família Alves Vilela de Nepomuceno. Os fundadores de Mococa e Casa Branca em São Paulo são relacionados a nossos Garcia, Figueiredo e Lima. Um parente dos Pereira de Nepomuceno fundou Bauru e consangüíneos de nossos Junqueira, Diniz e Antunes fundaram Franca, ambas importantes cidades paulistas. Um recente governador de Goiás, Maguito Vilela, é neto de um Figueiredo Vilela de Coqueiral.
Os povoados de Lavras e de Nepomuceno surgiram de motivos diferentes. O de Lavras nasceu de uma capela, hoje a Matriz da cidade. Gente que não se dava com o tumulto do garimpo do Funil originou um povoado a certa distância dali. Luiz Gomes Salgado, o dono das terras desse local, decidiu construir uma capela em louvor de Santa Ana, autorizada em 1751. O patrimônio doado por ele eram umas capoeiras nas vizinhanças da dita capela, isto é, o atual centro urbano de Lavras. Os descendentes de Luiz Gomes Salgado, fundador de Lavras, hoje são os admirados nepomucenenses da família Teófilo Salgado.
Já o povoado de Nepomuceno surgiu da fazenda do Congonhal, ainda hoje existente, mas sem o casarão primitivo. Os escravos e agregados da fazenda habitavam um arruamento, hoje rua Mariana Januária, que ligava o casarão até o local onde foi erguida uma capela, hoje a Matriz, em louvor de São João Nepomuceno. Nessa época disseminou-se pelo mundo o culto a este santo que viveu 300 anos antes. O fervor foi tão grande que seu nome foi dado a lugares, pessoas e até a navios. O dono da fazenda Congonhal era Mateus Luiz Garcia e o povoado surgido de sua fazenda veio a ser distrito de Lavras, mais tarde promovido a Vila de Lavras. Daí que até hoje o povo de Nepomuceno chama sua cidade de Vila. Ainda agora a fazenda do Congonhal pertence a familiares de Mateus, no caso os filhos do estimado casal João e Vera Veiga.
A maioria das terras da cidade de Nepomuceno, entretanto, não pertencia aos Garcia, mas compunha a imensa propriedade de Vicente Ferreira Costa, o célebre sesmeiro capitão Vicente, da Fazenda da Lagoa. Mateus e Vicente eram capitães. Ser capitão nessa época, antes da Independência, era muito mais do que coronel depois desta. A família Garcia/Figueiredo/Vilela era oriunda de imigrantes açorianos e a família Costa/Salles/Pádua era de ascendência bandeirante. O latifúndio do Capitão Vicente chegava perto da sede da Fazenda do Congonhal. Separando as duas propriedades, passava a Estrada Boiadeira, hoje Avenida São João (uma das ramificações do Caminho Velho). Os familiares do Capitão Vicente reivindicaram que uma faixa abaixo da Estrada Boiadeira era ainda de seu domínio, daí que a rua abaixo da Estrada, apelidada de Rua dos Tocos, passou a ser oficialmente denominada Rua Francisco Lima, herdeiro de Ferreira Costa - mas o povo prefere chamá-la Rua das Árvores. Chamam-na assim por ser a única arborizada, em comparação com as outras três primeiras ruas da cidade: Rua Mariana Januária (de ir à capela), Rua Direita (do comércio, hoje Ernane Vilela), Rua Nova (dos artífices, hoje João Inácio Dias).
Por falar em árvores, Mateus Luiz Garcia, fundador de Nepomuceno, deve ser considerado pioneiro do movimento ecológico mineiro e brasileiro. Os comerciantes da praça principal de Lavras queriam derrubar as belas árvores ali existentes, por cobiça financeira. O povo se opôs. Para garantir a derrubada, os malvados contrataram a proteção de Januário Garcia, o homem mais temido em Minas, por andar com um colar de sete orelhas, retiradas de sete irmãos, assassinos de seu irmão. As árvores não foram abatidas e algumas ainda estão lá para orgulho de lavrenses e nepomucenenses, bem como para a apreciação dos turistas. Quem foi o defensor vitorioso das árvores foi o primo de Januário, nosso Mateus Luiz Garcia. Na praça, diante deste, o temido Januário Sete Orelhas, segundo a tradição oral, teria dito: sei que o primo Mateus não é capaz de pisar numa formiga, mas taí um homem que não enfrento de jeito nenhum...


O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.
É também historiador do Sul de Minas e autor do livro de memórias O RISO DOURADO DA VILA, 2003.
Este texto, com ligeiras modificações, corresponde ao discurso proferido pelo autor, como orador oficial no 99º aniversário da cidade de Nepomuceno, em 29/08/010

quinta-feira, 26 de agosto de 2010