sexta-feira, 21 de janeiro de 2011


EM MEIO A MEGA-DESASTRES, NAVEGA NOSSA NAU DOS INSENSATOS, COM A SAÚDE E A EDUCAÇÃO A BORDO

João Amílcar Salgado

Quanto mais bem sucedido vem sendo o atual governo na melhoria da distribuição de renda no país, mais escandaloso é seu fracasso em saúde e educação. Em meio a mega-desastres aéreos e à violência crescente, ninguém está dedicando atenção a nosso risco como passageiros desta verdadeira nau dos insensatos, capitaneada pelos ministros da saúde e da educação.

É ledo engano pensar que uma boa notícia, como o anúncio do pré-sal ou o reconhecimento do BRIC, seja capaz de compensar a derrocada na saúde e na educação. Tais boas-novas desviam a atenção, anestesia dores menores, produz refresco breve – mas as duas feridas largas e profundas, da saúde e da educação, prosseguem subsistentes. Já as más notícias, principalmente a péssima notícia, como de três mega-desastres aéreos recentes ou da violência endemo-pandêmica, podem aprofundar a anestesia, mas seu efeito é igualmente temporário.

E os próprios respectivos setores governamentais se encarregam de reacender, rápido, o ferro-em-brasa da débâcle na educação e na saúde. Isso acontece quando, de modo trapalhão, tentam melhorar as coisas, mas acabam piorando tudo e fazendo tudo ficar irreversível. Por exemplo, no hemisfério norte, tenta-se responder ao craque imobiliário com duras medidas não só contra a farra de contas em paraísos fiscais, de lucros, de salários e de spreads, mas também contra a cultura da irresponsabilidade ou contra os dispositivos controladores cevados na promiscuidade explícita com os controlados. Enquanto isso, aqui tudo prossegue como-dantes-no-quartel-de-abrantes – com farra análoga, só que maior, com a mesma cultura, só que ao jeitinho brasileiro, e com igual promiscuidade, só que muito mais cínica.

Na educação, acabam de transformar o ENEM (herança maldita do fiasco do provão) num arremedo de “exame vestibular nacional”, no qual qualquer cultor do óbvio é capaz de reconhecer autêntico vôo-cego de aprendizes-de-feiticeiro. Este pseudo-vestibular nacional, chega para ser um requinte a mais na desbragada mercantilização do ensino superior. Nesta se inclui a imensa insensatez da explosão de faculdades picaretas de medicina, e, para maior horror, o vergonhoso colapso do ensino público pré-universitário, estando as nossas antigas escolas primárias à mercê de gangues de pivetes e de livros didáticos alegremente obscenos. Intrínseco a isso, no ensino superior público, o mencionado neo-liberalismo farrista causou e causa o sucateamento físico, docente e moral das universidades - sendo este último só agora noticiado, com vários reitores deslocados, na mídia, das páginas de ciência para as páginas policiais. E, para coroar o descalabro, assistimos atônitos à avassaladora aventura do ensino-à-distância, com todo seu claríssimo potencial de fraude e corrupção. Tanto este como o ENEM e o ENADE estão sendo empurrados goela-abaixo das universidades públicas, a poder de coação e até de chantagem.

Na saúde, somos obrigados a assistir deprimente competição diária por estacionamento, quando as ambulâncias municipais, recém-chegadas de cada cidade do Estado, disputam espaço para descarregar casos não-resolvidos no Hospital das Clínicas. Na outra ponta, nos postos de saúde metropolitanos, prossegue, a cada minuto, o confrangedor desfile de dor, pranto, morte e tumulto nas filas de atendimento. Ao mesmo tempo, os “planos de saúde”, que não são planos e nem são de saúde, faturam milhões e milhões. E não constituem nenhuma assistência suplementar ao SUS, mas sim dispositivos de fato complementares, que estão aderidos ao SUS num abraço letal. Os assessores ministeriais, arrasados por tanta incompetência, paradoxalmente se animam diante das últimas ameaças de epidemia ou se assanham no afã de uma campanha contra isso ou aquilo - na esperança de poder parecer que, pelo menos nesta ou naquela questão conjuntural, se estão saindo bem ou menos mal (mas estão muito mal nos escândalos cumulativos do tamiflu restrito a grupo de risco, do atraso da vacina antigripal e do diagnóstico específico da gripe suína limitado a três centros). Ou então anunciam, como se fosse grande achado inovador, a proibição da auto-medicação com elixir paregórico, com formol ou com antibióticos ou ainda do banho ultravioleta, escondendo do público que qualquer restrição à cobiça infinita da industria de saúde é feita de comum acordo com ela própria, sob a alegação neoliberal de procurar não ofender o mercado.

E, para fechar com chave-de-ouro esse tour maldito de insensatezes, se aferram, com cega obstinação, àquilo que considero a maior cara-de-pau da histórica da medicina. É quando fazem o alerta solene de que, caso algo dê errado, caso o problema persista, que o cidadão procure um médico. De preferência um médico despreparado, formado numa faculdade picareta, que eles próprios acabaram de autorizar

* * *

E O MINISTRO NÃO RENUNCIOU!

O principal do texto acima saiu em meu blogue (jamilcarsalgado.blogspot.com) em 22 de junho de 2009. Diante do que está dito aí, os amigos perguntaram: se isso é fato, será que vai estourar algum escândalo produzido por tanta insensatez? E não é que, no dia 1º de outubro de 2009, a imprensa denuncia a fraude do ENEM, levando à suspensão do pretenso vestibular? A partir daí recebi muitos cumprimentos (sem qualquer alegria minha) pela profecia de junho. Mas o maior escândalo não é a fraude. O maior escândalo é que o MINISTRO NÃO RENUNCIOU. E continua a se exibir na mídia como se a coisa nada tenha a ver com ele! E NINGUÉM ESTÁ EXIGINDO A SUA RENUNCIA!

* * *

O texto acima foi postado em novembro de 2009. Já estamos no Governo Dilma, a quem apoiei, mais por pavor do FHC & Cia. E, logo depois da posse, ela fraqueja em não demitir Hadad. Neste momento há na TV dois noticiários. Um deles é a continuidade dos megadesastres, com enchentes, avalanches e tornado. O outro é a continuidade da confusão cada vez maior com o ENEM. E o ministro Hadad permanece impávido. Para dar satisfação aos menos inteligentes, teve o despudor de demitir um de seus auxiliares, como se isso o dispensasse de renunciar! Dilma, você demitiu o Temporão. Aguardamos que complete o saneamento da nau dos insensatos!

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011


WILSON LUIZ ABRANTES

A culminância sinfônica da cirurgia


João Amílcar Salgado

Wilson Abrantes diplomou-se em medicina em 1956 pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais e bem antes da formatura já se salientava na clínica cirúrgica criada por Eduardo Borges da Costa, um dos fundadores da faculdade. A cirurgia moderna - aquela decorrente da descoberta da microbiologia e da anestesia - foi introduzida em Minas a partir de três cidades: em Juiz de Fora pelo mineiro Hermenegildo Vilaça, em Belo Horizonte pelo carioca Borges da Costa e em Itamarandiba pelo francês Afonso Pavie.

A escola cirúrgica criada por Costa, das três, foi a que teve, desde o início, o caráter universitário. Demais, viveu dois momentos históricos. Deslocou-se da Santa Casa de Belo Horizonte a Paris, onde, no final da primeira guerra mundial, causou excelente impressão, ao executar cirurgias de guerra no Hospital Necquer (cognominado bresilien). Depois, se instalou, em 1922, no novíssimo Instituto do Radium (hoje Hospital Borges da Costa), onde, circundada por cientistas como, entre outros, o bioquímico Baeta Viana e o patologista Carlos Pinheiro Chagas, passou a aperfeiçoar um modo de operar que harmonizava rapidez, precisão e elegância, o qual se prolonga até os dias atuais. Assim, a elegância, a precisão e a agilidade, admiradas hoje em Abrantes por quantos colegas acompanham sua atividade profissional, não são mais do que a culminância sinfônica, feita de talento e competência, apurada ao longo da invejável tradição desta aristocrática corrente da cirurgia mineira.

Em meu livro de memórias, O RISO DOURADO DA VILA, descrevo o então estudante Wilson Abrantes, quando auxiliava uma cirurgia: No ano de 1956, o primeiro pavilhão do Hospital das Clínicas estava novinho em folha e ali, como já mencionado, tive de ser operado de varicocele. O doutor Emílio Castelar, ... ... pessoa queridíssima de todos nós, sugeriu ... ... o cirurgião Haroldo Pereira, compridão, óculos fundo de garrafa, sério. Será que ele vai enxergar direito, e se a máscara embaçar a lente e ele errar minha veia ou me castrar? A anestesia foi raquiana e, graças a ela, assisti toda a movimentação da equipe, famosa por sua rapidez e elegância. ... ... ... O Zé Elísio (Correia Lima) que era interno de clínica médica esteve na sala cirúrgica o tempo todo contando causos. O primeiro auxiliar foi o interno de clínica cirúrgica Wilson Abrantes, que a toda hora comentava com o Haroldo a técnica usada: a operação de Ivanissevich (apesar do nome, este era argentino, que a propôs em 1923). O Zé e o Wilson vieram a ser respectivamente consagrado anestesista e célebre cirurgião, grandes amigos meus pela vida afora.

Antes que minha turma se formasse, tivemos a especial sorte de ser alunos do recém-graduado Wilson Abrantes. Os refinados cirurgiões que, modéstia à parte, surgiram de tal privilegiado grupo, como Sérgio de Almeida, Geraldo Coutinho, Sílvio Ribeiro, Rui Esteves Pereira, Dilair de Faria, Luiz Antônio Luciano, Jairo Guerra, Marcos Vinícius Aguillar, Orion Alvarez, Marcelo Ferreira, Ernesto Lentz e Gilberto Lino ficaram definitivamente marcados por sua saudável influência. Os dois últimos, em especial, pois foram como que residentes dele. Era natural, pois, que esse docente, ainda tão novato e já tão destacado nesta função, fosse homenageado na formatura, da qual tive a honra de ser o orador.

Um horrendo pecado foi então cometido pela direção da faculdade e da universidade. Privaram-se a si mesmas do brilho daquele raríssimo profissional que haviam graduado. E esse homem que nasceu para ensinar foi criminosamente proibido de continuar docente. Mas sua vocação de professor era tão grande que ele, em vez de se abater, tanto fez que encontrou não outro mas outros meios de prosseguir ensinando pelo anos em fora, semeando competências e admiradores por Minas e pelo Brasil.

Finalmente, mais de quarenta anos depois, a faculdade e a universidade se retratam e lhe reconhecem todos os méritos de que é credor. E lhe concedem a distinção tributada aos egressos que mais ilustram a alma mater. A propósito de tal galardão, quero fazer quatro registros que, a partir de agora, desejo que sejam do conhecimento de todos.

Wilson Abrantes passou a exercer no Pronto Socorro (hoje Hospital João 23) a docência que lhe foi negada na faculdade. As demais equipes de plantonistas se pautaram pela requisitada equipe liderada por ele, de tal modo que gerações de médicos lhe devem esta pedagogia inestimável. E isso era tão patente que a faculdade, ao fazer a notória reforma curricular de 1975, formalizou o informal estágio no Pronto-Socorro, sob a forma de disciplina obrigatória. E foi assim que ele retribuiu, com generosa contribuição, a injustiça de que foi vítima.

O mas significativo é que a retribuição se deu não só no fato em si, mas como origem do CONCEITO PEDAGÓGICO DE CURRÍCULO PARALELO OU CLANDESTINO, ou seja, aquele currículo desenvolvido extramuralmente pelo aluno, na busca desesperada para conseguir fora o treinamento que lhe é negado dentro da escola. E é notável que a concepção se inspira naquele que buscou exercer fora o ensino que lhe foi negado dentro da escola! Em 1986 tive a oportunidade de expor a idéia e o fenômeno de currículo paralelo ou clandestino em universidades dos EUA. Um conceituado especialista em ensino médico me aparteou dizendo que este conceito era o instrumento de análise mais interessante ouvido por ele nos últimos tempos. E eu lhe respondi que era, em grande parte, resultado de reflexões sobre tremenda injustiça cometida contra um notável médico de meu país.

E isso não ficou por aí, pois tal inspiração levou a um conceito mais amplo, o de UNIVERSIDADE PARALELA. De fato, quando meu colega Cid Veloso foi candidato a reitor, incluí em sua plataforma a proposta de criar a Universidade Paralela da UFMG, que nada mais é que trazer ao público interno e externo de nossa universidade aqueles, como Wilson Abrantes, que jamais deveriam estar fora dela. Nisso incluiríamos uma gama enorme de gente, inclusive da cultura popular. Infelizmente não foi possível concretizar essa idéia, cujo único remanescente é esta premiação que ora se dá. Além disso, temos no Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais uma miniatura de como seria a coisa, pois ali historiadores, estudiosos e interessados, não pertencentes ao corpo docente, comungam com este, sem discriminação, o grato prazer de dialogar com a juventude.

Se fui paciente do ainda estudante Wilson Abrantes, também testemunhei uma das últimas de suas inúmeras façanhas cirúrgicas enquanto ainda docente. Quarenta crianças abandonadas só tinham por elas no mundo dona Conceição Fernandes, que nada tinha de seu exceto a saúde. Pois bem, um tumor gástrico foi diagnosticado na extraordinária mãe adotiva. Eu disse ao cirurgião que da perícia dele, diante daquela lesão inicial (endoscopica e histologicamente identificada), dependia o futuro dos meninos. E acompanhei, com surpresa e crescente admiração, por mais de duas décadas, a sobrevida assintomática daquela magnífica benfeitora.

Finalmente, quero salientar um traço desse mestre unânime do qual são testemunhas seus numerosos ex-residentes: é o uso do humor como instrumento didático. Esta é uma tradição mineira e de nossa faculdade, cultivada do Ângelo Machado ao Osvaldo Costa, e que no Abrantes adquiriu peculiaridades deliciosas. Trata-se de uma das marcas de sua grandeza, pois, em vez de travo amargo ou lamuriento, retribui com ensinamento e riso a supressão inominável da metade irredutível de sua vocação, a de professor. Daí a frase tão verdadeira que me proferiu emocionado: João, eu saí da escola, mas a escola não saiu de mim.

O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais