sexta-feira, 28 de março de 2008

D. JOÃO VI E A MEDICINA


Em 2008 comemoramos os 200 anos da chegada de João 6o ao Brasil e esta é a oportunidade para que os historiadores da medicina perguntem: quais foram as relações de João 6o com a saúde? Comecemos por apontar três delas: a varíola de seu irmão, a loucura de sua mãe e a autorização para a abertura de cursos médicos no Brasil.
A VARÍOLA NA CORTE. O príncipe José, irmão mais velho de João 6o , seria o herdeiro do trono luso, mas sua morte, em 1788, aos 26 anos, causada pela varíola, exigiu que João passasse a herdeiro. A data da morte do príncipe José indica que este sofreu a varíola um ano antes da publicação sobre a vacina feita por Jenner em 1798. Mas antes da vacina de Jenner já havia o recurso à variolização, prática milenar oriental, divulgada na Europa por Lady Montagu desde 1721. Tal recurso poderia ter salvo o príncipe José que foi educado e preparado para assumir o poder. Com sua morte, o príncipe João teve de ser de certa maneira improvisado para a missão difícil de governar aquele vasto reino, mais ainda naquelas circunstâncias históricas.
A LOUCURA DE MARIA 1A. Maria 1a foi a primeira rainha reinante de Portugal, filha de pai português, o rei D. José, e de mãe espanhola, Mariana de Bourbon. Este casal não teve filhos homens e daí Maria se tornou herdeira. Casou-se com um tio, Pedro 3o, e acompanhou a morte de vários filhos, inclusive a do príncipe herdeiro José, falecido dois anos após o pai (ele também casado com uma tia). Os biógrafos apontam como circunstancia de sua loucura, além da hereditariedade endogâmica, a mudança de uma vida inicial de mulher despreocupada para o exercício súbito, em 1777 (um ano após a guerra de independência dos EUA), de pesadas responsabilidades masculinas, sob um céu existencial de terríveis nuvens ameaçadoras. Estas se compunham das mortes citadas, dos movimentos de independência nas Américas, do triunfo da revolução francesa, com reis guilhotinados, e do remorso pela aplicação da pena de morte (exemplo de Tiradentes) e pelas perseguições promovidas por Pombal e adeptos, especialmente aos aristocratas suspeitos de judaismo e aos jesuítas. Tudo isso era mais fanatizadamente aterrador e mais demonizadamente angustiante em conseqüência da exploração de seu pietismo infantil por seu confessor, o inquisidor José Maria de Melo, bispo do Algarve. Em outras palavras, Maria estava esmagada entre, de um lado, a força do pombalismo, com pressões para ser simples déspota, se possível déspota esclarecida e se possível ainda “déspota constitucionalista”, e, de outro lado, a versão católica do pietismo, de devoção ao Sagrado Coração, pregada por prosélitos da Visitação e inspirada em Santa Margarida Maria O historiador da medicina corre o risco de analisar anacronicamente a loucura de Maria 1a. Para se prevenir disso deve conhecer bem o capítulo da história da psiquiatria pré-nosológica, própria da época, seja na Europa, seja especificamente em Portugal. A corte chegou a mandar vir o padre e médico Francis Willis que teria curado a loucura do rei inglês George 3o e que nada pôde fazer no caso da rainha, apesar dos honorários regiamente cobrados. A cura de George 3o, diante da terapêutica ministrada por Willis, levou alguns historiadores a levantar a suspeita de sintomas reversíveis de origem orgânica, como porfiria ou envenenamento. A idade avançada de 82 anos com que morreu Maria 1a faz supor que sua loucura não era grave. O diagnóstico proto-nosológico de melancolia mencionado na época é interessante, pois continua em moda, hoje com a tentativa de moderniza-lo no âmbito do transtorno bipolar (como semiologista, uso aqui o péssimo designativo transtorno sob protesto). O anacronismo neste particular é grave, na medida em que taxonomistas ianques querem sancionar a manutenção do uso do velho vocábulo, restringindo-o à manifestação apenas monopolar, mais lamentável ainda se vinculada a déficite mental. Isso chega a significar ofensa à abrangência semântica de melancolia, já que o termo já dispunha de cânone artístico, aristocraticamente timbrado, depois que o renascentista húngaro Albrecht Dürer (gênio universal, uma espécie de Leonardo da Vinci do norte da Europa, para onde migrou) pintou célebre quadro com tal nome. O temo melancolia (que literalmente significa pletora de bile negra, sendo bile = cole e negra = melanos) remonta ao médico, poeta e filósofo pré-socrático Empédocles, outro gênio universal, nascido em Agrigento, na Sicília. Enquanto os neurocientistas de hoje localizariam a melancolia no encéfalo, antes os médicos, durante mil anos, a localizavam no baço (local próprio da bile negra, oposta à bile amarela, simetricamente localizada no fígado). Ainda no século 19, sob um céu também de terríveis angústias, representadas pela peste branca da tuberculose, os poetas ultra-românticos usavam o termo spleen (baço em inglês) para designar o culto à melancolia, ao tédio, ao suicídio e ao abismo (remontante a Byron), como foi o caso de Charles Baudelaire, autor de um soneto e três poemas com o mesmo nome, e do poeta brasileiro Álvares de Azevedo, autor de dois poemas SPLEEN E CHARUTOS e MACÁRIO, onde aparece o termo.
ABERTURA DE CURSOS MÉDICOS POR JOÃO 6o . Não é correto dizer que João 6o trouxe o ensino superior de medicina para o Brasil. Jornalistas e até historiadores estão cometendo o erro de confundir curso de cirurgia com faculdade de medicina. João 6o abriu em 1808 dois cursos de cirurgia, um em Salvador e outro no Rio. A verdade é que tais cursos não eram de nível superior, isto é, não eram faculdades de medicina. E nem foram os primeiros criados no Brasil, pois o próprio príncipe regente já havia criado um curso de cirurgia em Vila Rica em 1801 e este estava funcionando quando da chegada da corte. Outros cursos haviam sido autorizados mas só o de Vila Rica funcionou regularmente. As faculdades de medicina só surgiram em 1832, depois da independência

quinta-feira, 27 de março de 2008

segunda-feira, 10 de março de 2008

DE PROTAGONISTA A HISTORIADOR

Em diversas ocasiões tenho denunciado o progressivo aprofundamento da crise na saúde e na educação. Tais posicionamentos decorrem de minha participação ativa no processo constituinte, quando vários itens pelos quais lutei foram incluídos nas constituições federal e estadual. Apesar de apontar falhas no texto final, participei com muita esperança dos preparativos para a saúde e a educação do governo federal Tancredo Neves. Acreditava mesmo que a autoridade desfrutada pelo novo governo sustentaria verdadeira revolução nestas áreas.
Com a morte de Neves, tudo mudou sombriamente e isso testemunhei de perto. O governo Sarnei, logo substituiu a autoridade pelo acovardamento, notadamente quando se tratou de implementar os itens mais drásticos exigidos pela constituição, seja na concretização do sistema único de saúde, seja na montagem de um ensino público universalizado. Era de se prever que as acomodações de Sarnei atingissem o caos no governo Collor e assim foi. Apesar disso, na luta desesperada para salvar alguma coisa, ainda conseguimos, no governo Itamar Franco, acabar com a central de negociações chamada Conselho Federal de Educação. Já no governo de Fernando Henrique Cardoso, encerrei qualquer participação em nível federal por meio do telegrama que enviei ao recém-empossado ministro Paulo Renato de Souza, quando lhe apontei a maneira irresponsável com que estava instituindo um monstrengo: o provão.
Ao tomar posse o governo Lula, cheguei a publicar no jornal CAROS AMIGOS uma espécie de roteiro por itens para que os leitores conferissem as providências que esperávamos do novo governo. Minha grande curiosidade era verificar como sua equipe enfrentaria o estado de coisas na saúde e na educação. E me surpreendi com a serenidade de seus ministros nestas áreas! Para meu estarrecimento, eles se comportaram como se estivessem ali apenas para maquiar os desastres de seus antecessores.
Na condição não mais de protagonista mas de historiador, faço aqui a análise da saúde e da educação, com base em minha vivência desde o governo estadual de Juscelino Kubitschek. Sim, desde meus posicionamentos colegiais e universitários, inclusive como orador da turma ao termino do governo nacional de Juscelino, tenho sido testemunha não apenas da irresponsabilidade governamental, mas das oportunidades perdidas e dos sonhos desfeitos, seja na trincheira da saúde, seja na frente educacional.

AO-PERSISTIREM-OS-SINTOMAS É UMA BOFETADA HISTÓRICA NA DIGNIDADE PROFISSIONAL DO MÉDICO

A automedicação foi objeto de pouca ou nenhuma pesquisa por parte dos historiadores da saúde. Dados coligidos em Minas Gerais indicam que sua história está superposta à da religiosidade popular, das terapias hoje chamadas alternativas e das ocupações da saúde não exercidas por médicos.
Reciprocamente, a vigilância sanitária na área química e farmacêutica também tem sido evitada pelos historiadores. Na química nascente do século 18, aconteceram cem anos de invalidez e morte, pelo uso a esmo de doses maciças das primeiras substâncias purificadas, a ponto de surgir a homeopatia, que, sob tal perspectiva, foi um pedido histórico de clemência, em favor da diluição dos tóxicos. Ingenuamente se acreditou que as farmacopéias, inicialmente não-oficiais e depois oficiais, fossem suficientes para corrigir abusos decorrentes da cupidez mercantil. Veio então, no começo do século 19, a polícia médica de Peter Frank, intuitiva e ingenuamente fundada no conceito faraônico-bíblico do limpo versus sujo. Desde então, a vigilância ficou estagnada ou apenas maquiada, na justa medida em que a mercantilização se tornou imensamente poderosa.
Tal descalabro culmina com inacreditável anúncio com que somos agredidos diariamente. Trata-se de ostensivo apelo à automedicação, que se completa com acintoso e cínico lembrete: ao persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado. A vigilância sanitária, os ministérios da saúde e das comunicações, bem como as entidades médicas e dos farmacêuticos são, portanto, inescapáveis co-réus deste duplo crime. Duplo por que? Não contente em pôr em risco a população pelo incitamento à automedicação, o anunciante constrange os médicos, e à própria revelia destes, a passivos cúmplices e a humilhados legitimadores de tão infame e perversa gana consumista.
Diante de tanta desfaçatez, resta à vigilância sanitária ouvir um apelo para que se distancie do século 19 e se encoraje para enfrentar o gigantismo dos interesses trilionários ou miliardários do século 21: interesse, cobiça e ganância do narcotráfico, do terrorismo químico e biológico, dos fabricantes de venenos agrícolas e domésticos, da indústria de alimentos, bebidas e tabaco, das transnacionais farmacêuticas e da neoindústia do doping e dos transgênicos.
Como fazer vigilância de tantas ardilosas atividades, por meio de pachorrenta burocracia, altamente vulnerável à corrupção, que, ao mesmo tempo, tem de ficar super-alerta contra o recrudescimento veloz das pestes infecciosas, não só humanas, mas animais e vegetais?