DE PROTAGONISTA A HISTORIADOR
Em diversas ocasiões tenho denunciado o progressivo aprofundamento da crise na saúde e na educação. Tais posicionamentos decorrem de minha participação ativa no processo constituinte, quando vários itens pelos quais lutei foram incluídos nas constituições federal e estadual. Apesar de apontar falhas no texto final, participei com muita esperança dos preparativos para a saúde e a educação do governo federal Tancredo Neves. Acreditava mesmo que a autoridade desfrutada pelo novo governo sustentaria verdadeira revolução nestas áreas.
Com a morte de Neves, tudo mudou sombriamente e isso testemunhei de perto. O governo Sarnei, logo substituiu a autoridade pelo acovardamento, notadamente quando se tratou de implementar os itens mais drásticos exigidos pela constituição, seja na concretização do sistema único de saúde, seja na montagem de um ensino público universalizado. Era de se prever que as acomodações de Sarnei atingissem o caos no governo Collor e assim foi. Apesar disso, na luta desesperada para salvar alguma coisa, ainda conseguimos, no governo Itamar Franco, acabar com a central de negociações chamada Conselho Federal de Educação. Já no governo de Fernando Henrique Cardoso, encerrei qualquer participação em nível federal por meio do telegrama que enviei ao recém-empossado ministro Paulo Renato de Souza, quando lhe apontei a maneira irresponsável com que estava instituindo um monstrengo: o provão.
Ao tomar posse o governo Lula, cheguei a publicar no jornal CAROS AMIGOS uma espécie de roteiro por itens para que os leitores conferissem as providências que esperávamos do novo governo. Minha grande curiosidade era verificar como sua equipe enfrentaria o estado de coisas na saúde e na educação. E me surpreendi com a serenidade de seus ministros nestas áreas! Para meu estarrecimento, eles se comportaram como se estivessem ali apenas para maquiar os desastres de seus antecessores.
Na condição não mais de protagonista mas de historiador, faço aqui a análise da saúde e da educação, com base em minha vivência desde o governo estadual de Juscelino Kubitschek. Sim, desde meus posicionamentos colegiais e universitários, inclusive como orador da turma ao termino do governo nacional de Juscelino, tenho sido testemunha não apenas da irresponsabilidade governamental, mas das oportunidades perdidas e dos sonhos desfeitos, seja na trincheira da saúde, seja na frente educacional.
AO-PERSISTIREM-OS-SINTOMAS É UMA BOFETADA HISTÓRICA NA DIGNIDADE PROFISSIONAL DO MÉDICO
A automedicação foi objeto de pouca ou nenhuma pesquisa por parte dos historiadores da saúde. Dados coligidos em Minas Gerais indicam que sua história está superposta à da religiosidade popular, das terapias hoje chamadas alternativas e das ocupações da saúde não exercidas por médicos.
Reciprocamente, a vigilância sanitária na área química e farmacêutica também tem sido evitada pelos historiadores. Na química nascente do século 18, aconteceram cem anos de invalidez e morte, pelo uso a esmo de doses maciças das primeiras substâncias purificadas, a ponto de surgir a homeopatia, que, sob tal perspectiva, foi um pedido histórico de clemência, em favor da diluição dos tóxicos. Ingenuamente se acreditou que as farmacopéias, inicialmente não-oficiais e depois oficiais, fossem suficientes para corrigir abusos decorrentes da cupidez mercantil. Veio então, no começo do século 19, a polícia médica de Peter Frank, intuitiva e ingenuamente fundada no conceito faraônico-bíblico do limpo versus sujo. Desde então, a vigilância ficou estagnada ou apenas maquiada, na justa medida em que a mercantilização se tornou imensamente poderosa.
Tal descalabro culmina com inacreditável anúncio com que somos agredidos diariamente. Trata-se de ostensivo apelo à automedicação, que se completa com acintoso e cínico lembrete: ao persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado. A vigilância sanitária, os ministérios da saúde e das comunicações, bem como as entidades médicas e dos farmacêuticos são, portanto, inescapáveis co-réus deste duplo crime. Duplo por que? Não contente em pôr em risco a população pelo incitamento à automedicação, o anunciante constrange os médicos, e à própria revelia destes, a passivos cúmplices e a humilhados legitimadores de tão infame e perversa gana consumista.
Diante de tanta desfaçatez, resta à vigilância sanitária ouvir um apelo para que se distancie do século 19 e se encoraje para enfrentar o gigantismo dos interesses trilionários ou miliardários do século 21: interesse, cobiça e ganância do narcotráfico, do terrorismo químico e biológico, dos fabricantes de venenos agrícolas e domésticos, da indústria de alimentos, bebidas e tabaco, das transnacionais farmacêuticas e da neoindústia do doping e dos transgênicos.
Como fazer vigilância de tantas ardilosas atividades, por meio de pachorrenta burocracia, altamente vulnerável à corrupção, que, ao mesmo tempo, tem de ficar super-alerta contra o recrudescimento veloz das pestes infecciosas, não só humanas, mas animais e vegetais?
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Um comentário:
Finalmente começou!
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