quinta-feira, 21 de agosto de 2008





AS DUAS SERPENTES E A MEDICINA

João Amílcar Salgado

Da conflituosa convivência entre ambos, ao longo de milhões de anos, a serpente é temida e invejada pelo homem. Este teme nela não só o potencial de morte, mas também o comportamento sorrateiro. Ele inveja nela não só o mesmo comportamento ardiloso, mas sua imortalidade individual. Então é sobre o comportamento da serpente, especialmente sua mágica de envenenar sem se envenenar e de fingir a morte sem morrer, que convergem o temor e a inveja do homem.
Na maioria das culturas a serpente é importante elemento mítico. O lado temido é representado pela própria serpente. O lado invejado é representado pelo rio (a serpente líquida), pelo arco íris (o rio celeste) e pelo pênis e suas variantes simbólicas (fálicas). Grandes civilizações se devem a grandes rios e em seus vales habitam serpentes gigantes e/ou arborícolas, como a píton, desde a África à China, e a jibóia e a sucuri, na América. Já o simbolismo fálico tem dupla força, pois se o pênis serve à sobrevivência da espécie, a serpente é a mais veemente referência observada na natureza em favor da sobrevida individual. Assim, um bastão fálico, enlaçado por um casal imortal de serpentes, em cópula, não poderia deixar de ser o símbolo perfeito da medicina.
Além da serpente e do bastão, a medicina conta com dois outros símbolos fálicos, recorrentes entre as culturas: o umbigo e o cavalo. A maioria dos povos denomina umbigo a seu local ancestral, nos respectivos idiomas nativos, e, assim, o nexo ônfalo-órbico sacraliza a saúde cultural das gentes, graças a sua conotação de centralidade, antigüidade e perpetuidade. Já o sonho de poder, representado na fusão do cavaleiro com o cavalo, inclui a tripla potência do centauro: sexual, artístico-industrial (habilidade manual) e médica. Por outro lado, a ligação mulher-serpente se faz meta-simbólica na saga de Tirésias e na tentação de Eva.
Em 1878 foi encontrado, numa biblioteca real assíria, o relato escrito da epopéia de Guilgameche. A história se passa num dilúvio ocorrido na Mesopotâmia, há mais de quatro milênios. Assim como na história semelhante de Noé, de quem, pela Bíblia, os assírios descendem, mas escrita posteriormente, o relato pode ser apenas a versão escrita, etnocentricamente adaptada, de lenda oral remontante ao degelo da última glaciação, há nove milênios. Este sim seria capaz de dilúvio aparentemente universal, superando a hipótese de mera inundação fluvial. Pois bem, Guilgameche, ao concluir que só sobrevivera por intervenção e eleição da divindade, pediu à mesma que a graça da sobrevida se estendesse em imortalidade. Seu pedido foi atendido, por meio de um vegetal panacéico - e ele de tão feliz adormeceu. Ao acordar descobriu que a serpente sorrateiramente lhe usurpara aquela dádiva.
Desde cedo o homem, ao observar a troca de pele das cobras, concluiu que elas espertamente driblam a morte, fingindo que morrem pela descamação. Neste sentido, quem sempre pretendeu usurpar a esperteza da cobra é o homem. E - por perseverar na esperança de que dê certo esta aplicação crucial do princípio homeopático - desenvolveu o conhecimento médico e, por isso mesmo, o símbolo mais persistente da medicina.
Em Delfos, na Grécia, o clássico oráculo reuniu a fonte solar da vida (Apolo) com o sonho da vida eterna (Píton), sob a intermediação terráquea e reprodutiva da mulher (pitonisas sibilinas) e também do falo umbilical (o umbigo geocêntrico). Aí, a devoção xamanística ao vinho, simbolizada em Dionísio (Apolo ébrio), se mistura ao fascinante recurso a substâncias indutoras de sonhos. Esta bela síntese mítica tem explicação antropológica, que remonta a bem antes dos gregos.
A domesticação de plantas e animais, em vários locais do mundo, levou à divinização do sol, que então substitui a divindade panteísta dos catadores-caçadores. No Egito, o sol, fecundante das cheias do Nilo, é Amon-Ra, deus também da medicina. A Grécia, onde aquela domesticação não teve o mesmo significado, copiou Amon-Ra como Hélios, por sua vez copiado pelos romanos como Apolo. Em virtude da especialização requerida pela maior complexidade social, um semideus, Imotepe, filho ou descendente de Amon-Ra, se torna o deus específico da medicina. Imotepe é copiado na Grécia como Asclépio e em Roma como Esculápio. Já na Mesopotâmia, o deus solar (correspondente a Amon-Ra) é Ninazu, fecundante da agricultura entre o Tigre e o Eufrates, enquanto seu filho semideus (correspondente a Imotepe) é Ningishzida. O Imotepe histórico (2667-2648 aC), deificado depois, foi médico do faraó Zoser. Além da medicina, foi pioneiro no uso da escrita (provável autor de farmacopéia) e na arquitetura, autor da primeira pirâmide faraônica - a de Sacara, em degraus, derivada de pirâmides núbias.
No Egito, antes do culto hegemônico a Amon-Ra, a divindade pré-agrícola correspondente é Toth. O caráter panteístico, ubíquo, flúido e imanente de Toth, permite que seu culto subsista após a agricultura, prolongando-se até hoje, ainda secreto e iniciático. A Grécia copiou Toth como Hermes e Roma como Mercúrio. Desde o início, Toth era identificado com a serpente, neste caso simbolizando virtudes genéricas de sagacidade, ubiqüidade e periculosidade, enquanto, na simbolização de Amon-Ra, as virtudes de sobrevida são concentradas na serpente constritora e arborícola. A serpente ligada a Toth é principalmente veloz e venenosa e a serpente ligada a Amon-Ra é sobretudo forte, poderosa e imortal.
Nos impérios alexandrino e romano, a iniciação a Toth é ritualizada em culto esotérico a Hermes Trimegisto, deste derivando, sucessivamente, a alquimia, a farmácia, a química, até chegar à manipulação do DNA. A substância mercúrio é a perfeita serpente líquida. Os primórdios da manipulação farmacêutica alexandrina surge da abertura gradual de segredos terapêuticos hermeticamente guardados. Daí que a serpente se acha no símbolo de Hermes tanto para o comércio como para a farmácia. O comércio farmacêutico das especiarias presidiu as Cruzadas e as grandes navegações. Para o comércio, o casal de serpentes entrelaça bastão alado, enfatizando os aspectos de informação privilegiada, segredos do ofício, agilidade, sagacidade e comunicabilidade. Para a farmácia ambas entrelaçam bastão em taça, enfatizando a simbologia de veneno domesticado (phármakon = veneno). O distintivo hoje do comércio foi usado para anunciar o local ou a presença do comerciante e depois para qualquer anúncio, neste sentido chamado de caduceu (bastão ou estandarte de anúncio). Na França, usa-se este termo também para o símbolo da medicina. Aliás, o próprio distintivo pagão de Hermes foi usado, nas guerras do Ocidente, para anunciar médicos militares e pessoal não combatente - antes da adoção do símbolo cristão da Cruz Vermelha.
O símbolo primordial da medicina é um segmento retilíneo de galho de árvore entrelaçado por um casal de serpente em cópula. Esboçado assim, exibe as tais duas simbolizações fundamentais: a da sobrevida da espécie (a madeira fálica, a forma do animal e a cópula) e da sobrevida do indivíduo (as serpentes descamáveis). As mais remotas representações já reduzem o pedaço de árvore a cajado ou bastão. Uma delas está no Louvre (2000 aC) e outra foi divulgada por Heuzey (2350 aC), ambas em cálice votivo para libação cerimonial a Ningishzida.
O moralismo ainda pré-cristão, mas principalmente cristão, entretanto, acabou fazendo lamentável censura à cópula das serpentes, reduzindo-as a apenas uma. A censura sexual sempre foi compreensivelmente mais severa no âmbito da medicina. Nisso pesou também a aproximação simbólica com o crucifixo. Assim foi deformada a comovente simetria do símbolo e ficou desequilibrada a forte mensagem emitida desde o paleolítico. A simples comparação visual, entre a mensagem semiografica, em pedra sabão, datada de quatro mil anos atrás, e o desenho molecular, da metade do século 20, é a esmagadora demonstração de que o código xamânico intuiu com incrível precisão o código genômico.
Vista sob tais antecedentes, a polêmica sobre uma ou duas serpentes perde muito de sua paixão. Nada melhor que um pouco mais de cultura para desinflamar debates apressados. A propósito, a medicina brasileira, desde antes da chegada dos europeus, está envolvida, de modo bem específico, com a serpente. No exercício da medicina a que foi obrigado, Anchieta foi informado pelos nativos de que as pessoas picadas por cobra e que sobreviviam poderiam ser novamente picadas sem qualquer dano - o que não deixa de ser um lampejo de imortalidade. Daí por diante coisas maravilhosas aconteceram. Pois não foi brasileira e também mineira a contribuição decisiva de Vital Brasil contra o MAL da ofensa ofídica? E não foi da brasileiríssima jararaca que nossos cientistas (um deles o mineiro Wilson Beraldo) descobriram o BEM não só da bradicinina (chave de herméticos segredos da fisiologia), mas também da família revolucionária de anti-hipertensivos, iniciada com o captopril?
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O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais



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