terça-feira, 7 de dezembro de 2010

SOBRE A PROIBIÇÃO DA VENDA LIVRE DE ANTIBIÓTICOS - OU DE COMO PROTEGER OS QUE LUCRAM COM A AUTOMEDICAÇÃO

João Amílcar Salgado

Está em vigor desde 29/11/10 a restrição à venda de antibióticos e outros antimicrobianos (Resolução 44/10 da ANVISA), que consiste na retenção de uma via da receita médica e a anotação dos nomes do médico, do paciente e do medicamento, bem como a quantidade deste.

Tal restrição, nas circunstâncias em que é promulgada, revela a hipocrisia dos atuais responsáveis pela ANVISA

Em primeiro lugar, a venda livre de antibióticos e outros antimicrobianos já estava proibida e nada vinha acontecendo aos que, a cada dia e a cada hora, desrespeitavam o impedimento. Agora decretam uma proibição repetitiva, com pretexto de dificultar a transgressão. Ora, isso significa concordar com esta, não passando de um escape gesticulativo, equivalente a trancar uma porta já arrombada.

Em segundo lugar, nenhuma medida contra algum tipo de automedicação terá credibilidade no Brasil, enquanto a própria ANVISA autoriza genericamente a automedicação – autorização esta que é acobertada pelo silêncio cúmplice do CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, do CONSELHO FEDERAL DE FARMÁCIA, da ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA e de demais instancias responsáveis.

Assim, a ANVISA, como agência fiscalizadora, se autodesmoraliza o tempo todo, quando, com aquela proibição específica e esta autorização contraditória, é tolerante com gravíssimo risco à saúde. E o pior é que tão grande risco decorre de criminosa indulgência para com a cobiça financeira da indústria farmacêutica. Tudo isso retrata inominável irresponsabilidade governamental.

O médico acaba arrastado, como cúmplice forçado, em tal descalabro. Para avivar os contornos do ultraje em que o médico é aí envolvido, transcrevo a denúncia contra a mais renitente das propagandas de automedicação, disseminada por todas as modalidades de mídia.

Em 16 de dezembro de 2001, submeti a seguinte denúncia ao Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais

Ilmos. Srs. Membros do Plenário do Conselho

Na qualidade de médico, professor de medicina e cidadão deste Estado de Minas Gerais, sinto-me no direito e no dever de, respeitosamente, solicitar informação a este plenário sobre anúncios publicitários que passaram a ser veiculados em nossos canais de televisão. Trata-se de propaganda de medicamentos que termina por apresentar a seguinte advertência ou equivalente: A PERSISTIREM OS SINTOMAS SEU MÉDICO DEVERÁ SER CONSULTADO.

A menos que a automedicação já esteja tacitamente aceita pelas entidades médicas e, pior que isso, autorizada a ser incentivada por meios publicitários – solicito ser informado oficialmente quais as medidas que este Conselho tomou ou está tomando diante do fato, que suponho seja do conhecimento de cada membro deste plenário.

Pedindo desculpas pela indignação que está por trás desta solicitação, apresento os protestos de minha mais alta consideração e de minha firme confiança na preservação dos princípios fundamentais da ética de nossa profissão, acima de quaisquer interesses mercantis. Atenciosamente, João Amílcar Salgado.

Infelizmente não tive conhecimento de que esta denúncia tenha sido apreciada pelo plenário do Conselho. Com o prosseguimento impune da propaganda denunciada expressei minha indignação no III Congresso Mineiro de História da Medicina (28-30/09/06) em texto com clara advertência sobre o caos progressivo da saúde e da educação, intitulado DURAS VERDADES SOBRE SAÚDE E EDUCAÇÃO. Desse documento, o primeiro tópico traz o seguinte subtítulo: AO-PERSISTIREM-OS-SINTOMAS É UMA BOFETADA HISTÓRICA NA DIGNIDADE PROFISSIONAL DO MÉDICO.

Nele manifesto minha repulsa à dupla agressão com que somos atingidos diariamente, decorrente de ostensivo apelo à automedicação, que se completa em acintoso e cínico lembrete: ao persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado. E concluo: A vigilância sanitária, os ministérios da saúde e das comunicações, bem como as entidades médicas e dos farmacêuticos são, portanto, inescapáveis co-réus deste duplo crime. Duplo por que? Não contente em pôr em risco a população pelo incitamento à automedicação, o anunciante constrange os médicos, e à própria revelia destes, a passivos cúmplices e a humilhados legitimadores de tão infame e perversa gana consumista.

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