domingo, 4 de dezembro de 2011

JOSÉ MARIA VEIGA AZZI E PAULO BARUCH

DOIS SULMINEIROS DA MAIS PURA TRADIÇÃO ABÁSSIDA


João Amílcar Salgado

Passei minha juventude ao som do violino do pai do Zé Maria, de nome Selem Feres Azzi, mas (para nós seus conterrâneos, todos seus amigos e grandes admiradores de sua arte) de apelido Selico. Ao violino, sua aparência não era de árabe, mas de cigano. Cultivava cabelos e bigode boêmios, de grande efeito sobre as mulheres, mas que a mim faziam lembrar Salvador Dali, o pintor catalão, que, por sinal, muito se orgulhava de sua ascendência árabe.

O pai Selico e a mãe (Maria Veiga Lima, de apelido Veiguinha), do José, reviveram em Nepomuceno o romance de um arrebatado violinista e uma linda estudante de medicina vivido pelo romeno/búlgaro/grego Georges Boulanger e a russa Ellionorr Paulson. Quando Boulanger viveu no Brasil, em 1948, influiu no repertório do Selico, que passou a um mix de música cigana, folclore balcânico e valsas vienenses. E, para gáudio dos conterrâneos, a Veiguinha era culta e também musicista. Formou com o marido um duo célebre e, depois com os filhos, um conjunto mais famoso ainda. Minha afeição à Veiguinha tem um componente a mais: ela foi aluna de meu pai e o descreveu para mim, em depoimento precioso, de como era como professor, no breve tempo em que deu aula de ciências, matemática e português, no colégio presbiteriano de Nepomuceno.

Na última vez que conversei com a viúva Veiguinha, propus a ela matarmos a saudade do Selico, sob os acordes da canção de Boulanger intitulada AVANT DE MOURIR. Os norteamericanos se apropriaram dela e mudaram-lhe o nome para MY PRAYER, que, cantada por THE PLATTERS, foi dançada por toda a nossa geração, nos anos dourados. Aliás o Zé Maria Veiga Azzi lembra que outra apropriação ianque ocorreu com a canção francesa COMME D'HABITUDE que fez sucesso nas vozes de Paul Anka e Frank Sinatra, cantada com o título deMY WAY. A Mireille Mathieu e o Vinício Tiso a cantam na versão original. Segundo o Zé Maria, outra apropriação - esta verdadeiro estelionato musical - se deu com a canção brasileira ONTEM AO LUAR, composta por Pedro de Alcântara, em 1907, e aproveitada para trilha musical do filme LOVE STORY (este, por sua vez, apropriado de Shakespeare). O maior violonista clássico brasileiro Antônio Carlos Barbosa Lima quase foi obrigado, em Nova Iorque, a pagar direito autoral ao estelionatário.

José Maria Veiga Azzi e Paulo Baruch graduaram-se em medicina na turma de 1967 da Universidade Federal de Minas Gerais. Dão-me a honra de se auto-intitularem jocosamente meus discípulos, mais pelas caraminholas que coloquei na cabeça deles ao longo dos seis anos de curso. Não apenas estes dois, mais ligados a mim por serem sulmineiros, mas toda a turma se distinguia por uma característica que se vai rareando: eram estudantes com sincero interesse pelo paciente. Em outros termos, sua formação, fundamente marcada pelo ensino da semiologia galizzeana, foi particularmente centrada na relação médico-paciente. Basta ver a estatura profissional dos médicos em que aqueles alunos se transformaram para a confirmação desse fato.

A ascendência árabe do Paulo e do José é coerente com a projeção de ambos como médicos. Todo o lado bom da medicina ocidental moderna vem de pequeno fato histórico referido no livro A HISTÓRIA DA DISPEPSIA E A DISPEPSIA NA HISTÓRIA, do qual sou co-autor: o alívio da atribulação dispéptica do califa Al-Mansur, fundador da dinastia abássida no império árabe medieval. Daí chegou à Europa a medicina hipocrática, em sua avançada versão alexandrino-nestoriana. Tradição tão alta é honrada em Minas Gerais e principalmente no Sul de Minas por magnífica plêiade de médicos de linhagem árabe.

Quando conheci o Paulinho, ele me causou admiração, quando, por brincadeira, perguntei-lhe qual o parentesco dele com o Spinosa. Ele não só demonstrou conhecer coisas surpreendentes sobre o pensamento deste filósofo como observou que, sendo libanês, não podia ser parente do judeu Spinosa. E me explicou que Spinosa não nasceu na Holanda como dizem os livros, mas em Portugal, e que Baruch em hebraico e em árabe quer dizer Benedito ou Bento. Daí que um é Benedito Spinosa e outro é Paulo Benedito ou Paulo Bento. Curiosamente, quando jovem o Paulinho era muito parecido com o profeta homônimo de Congonhas e, na festa do trote, houve quem sugerisse que ele comparecesse ao desfile dos calouros com o turbante, as botas e a demais vestimenta da escultura – o que afinal não aconteceu. O Paulinho e eu agora estudamos dois outros judeus portugueses, um médico e um pintor: Francisco Sanches (de quem Descartes copiou o cogito) e Silva Velásquez (que muitos consideram erradamente andaluz).

Data daqueles anos iniciais a dupla dimensão humana do Paulo. Na medida em que se transformava no médico fino e completo que veio a ser, nunca deixou de cultivar o lado meditativo de sua rara inteligência. A preocupação com os descaminhos da humanidade e com a solidariedade humana rendeu-lhe sólida cultura, que procura esconder, mas não consegue. A leitura de meu livro O RISO DOURADO DA VILA serviu-lhe de estímulo e de desafio para que também registre suas memórias – nas quais os amigos esperam ler aqueles acontecimentos que só acontecem pelos lados de sua terra.

Já o Zé Maria, não bastando sua plena formação clínica, veio a ser rematado cirurgião. Costumo dar o exemplo de dois médicos do Sul de Minas, Geraldo Alves Coutinho, de Ouro Fino, e José Maria Veiga Azzi, de Nepomuceno, cuja habilidade cirúrgica é tão excepcional que se aproxima do desempenho artístico. Ambos decidiram não ficar na Universidade, onde se teriam notabilizado sem a menor dúvida. E foram exercer a profissão em cidades do interior, em cujo ambiente regional foi inevitável que se tornassem heróis e ídolos. E o Zé Maria prima por colocar seu lavor estético não só na cirurgia, mas, com idêntico esmero, o repassa à execução musical, seja como instrumentista, seja como arranjador e maestro.

Guardo com carinho as imagens e o som, captados pelo “cineasta” Dácio Moreira, pelos quais, naquele delicioso encontro de colegas na casa do Paulinho, o José Maria executa, em homenagem a Nepomuceno e a mim – e também a seus pais – o bolero ESMAGANDO ROSAS, obrigatório em todos os bailes de nossa juventude.

O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina na Universidade Federal de Minas Gerais.

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