sexta-feira, 20 de novembro de 2009

INDÚSTRIA DE SAÚDE e pedagogia médica

João Amílcar Salgado

FARMACOBRÁS VERSUS BIOBRÁS

Em 1963, eu era recém formado, quando Marcos de Mares Guia, Carlos Ribeiro Diniz, Zigman Brener, Amílcar Martins, líderes do diretório acadêmico e eu participamos de uma reunião para propor que, entre as chamadas reformas-de-base do governo João Goulart (educacional, tributária, eleitoral, agrária e urbana), fosse incluída a da indústria farmacêutica. Defendíamos a criação da Farmacobrás, espelhada na Petrobrás. Como era do estilo do Marcos, ele, mesmo em plena ditadura, prosseguiu defendendo uma indústria nacional de medicamentos e acabou substituindo a nossa Farmacobrás pela Biobrás. Para isso ele se valeu do que observara na Europa e na Norte-América.

Marcos de Mares Guia foi criticado por aproveitar nossa experiência com o curso pré-médico para instituir o cursinho Pitágoras e de aproveitar a nossa proposta da Farmacobrás para instituir a Biobrás, ambas instituições privadas. Como seu admirador, lembro que ele não tirou nada de ninguém, pois era co-autor da experiência e da proposta, tanto como eu e os outros. E digo mais: sua capacidade realizadora percorreu o caminho que se abria a ela. Não havendo o golpe militar e sendo Kubitschek reeleito em 1965, é quase certo que a Farmacobrás fosse criada e que nosso colégio universitário, bem como os símiles do referido curso pré-médico teriam tal envergadura que reduziriam os cursinhos pré-vestibulares a fenômeno menor. E, quanto à edição de livros médicos (outra proposta nossa durante o governo Kubitschek), teríamos, em vez da Cooperativa Editora, uma editora de verdade.

A Biobrás ocupa lugar único na história da industria brasileira. Sua origem remonta, como foi dito, à proposta da Farmacobrás, mas sobretudo ao raciocínio imensamente criativo de Carlos Ribeiro Diniz, segundo o qual a escola bioquímica de Baeta Viana era a única a dominar de fato a enzimologia no hemisfério sul. E isso na terra do mamão e do abacaxi, fontes ultra-disponíveis dos dois mais potentes enzimas proteolíticos vegetais. Daí que cumpria aos bioquímicos mineiros a missão de fabricar medicamentos para o povo brasileiro, a partir de tais privilégios. Marcos de Mares Guia apresentou para tese professoral audaciosa proposta nesse sentido. Essa tese do Marcos e a minha de doutoramento têm este ponto em comum: em vez de meras peças acadêmicas, são um manifesto e um desafio em favor da solução de problemas da realidade brasileira. A quebra do monopólio da fabricação da insulina por um país do hemisfério sul foi uma das conseqüências de tal posição revolucionária, depois completada pela fabricação da insulina humana recombinante. Infelizmente a empresa brasileira assim criada hoje está nas mãos de uma indústria européia.

Outro fato, de que participei mais recentemente, está ligado ao desejo do Marcos de fabricar a vacina para a leishmaniose cutânea, desenvolvida por nosso querido Wilson Mayrink, concretizando um sonho de Samuel Pessoa. Técnicos governamentais obstaculizavam a autorização para que uma indústria mineira fabricasse a vacina de um cientista mineiro. O Marcos pediu ao Philadelpho Siqueira e a mim para falarmos com Sérgio Arouca em favor da causa de nosso Estado e este nos atendeu, depois que lhe sumariei o histórico acima.

ENSAIOS TERAPÊUTICOS

O conceito de ações alfa e beta da adrenalina, antes objeto de dúvidas, levou ao desenvolvimento de medicamentos que poderiam ser úteis na cardiopatia chagásica e também em testes comprobatórios da denervação cardíaca. Fomos os primeiros a pesquisá-los nesse sentido. Também fomos os primeiros a usar o mebendazol para demonstrar a simulação clinico-radiologica da úlcera péptica pela estrongiloidose. Ainda fomos os primeiros a usar o hicantone na esquistossomose, quando verificamos que o fabricante, por informação falsa, nos induziu a experimentar no indivíduo humano a forma injetável, sem testes prévios em animais.

A analogia entre, de um lado, as ações alfa e beta da adrenalina e, de outro, eventuais ações alfa e beta da histamina levou ao surgimento da cimetidina, da qual fizemos o primeiro teste duplo cego no Brasil, comparativamente a outros três em outros países. Demonstramos o erro do uso analgésico de antiácido no grupo placebo e comprovamos eficácia igual para a cimetidina e o antiácido, desde que prescritos adequadamente.A metodologia endoscópica usada aí teve repercussão nacional e nossos principais adeptos reuniram condições para a criação do Instituto Alfa de Gastroenterologia, no qual os ensaios terapêuticos se desdobraram no estudo do Helicobacter pilori.

TESE DE SEBASTIÃO SOARES LEAL E A TENTATIVA DE FORMULAR E FABRICAR NOVO MEDICAMENTO

Em 1982 Sebastião Soares Leal defendeu tese histórica sobre eficácia e custo de anti-ácidos comerciais. A repercussão levou à edição da tese em livro, pela Cooperativa Editora. O pesquisador concluiu que quase todos os anti-ácidos comerciais teriam que ser ministrados em alta quantidade para serem eficazes, sendo o pior de todos aquele fabricado pelo governo (Central de Medicamentos). Com base nessa pesquisa propus a formulação de um anti-ácido ideal, mas não houve interesse governamental. O laboratório Wyeth se ofereceu para fabricá-lo, depois desistiu e me devolveu o projeto. Para minha surpresa mais tarde lançou um anti-ácido baseado parcialmente nesse projeto.

PADRONIZAÇÃO DE MEDICAMENTOS

Em 1972, implantou-se a residência médica inaugural da UFMG, a partir de comissão designada pelo diretor da Faculdade, da qual Ennio Leão (marco internacional no ensino pediátrico) era presidente e eu seu vice. A proposta era de concretizar uma residência médica verdadeira e decente, portanto isenta de todos os vícios que a residência atual exibe. Desse propósito surgiu a comissão de padronização hospitalar, outra novidade, composta de subcomissões para várias áreas, sendo a mais importante a subcomissão de padronização de medicamentos. E lá fomos o Ênio Leão e eu para a padronização. Antes tínhamos criado mais outra novidade, a farmácia hospitalar, entregue à competência da farmacêutica Zildete Pereira de Souza, que logo se tornou a maior autoridade nesta área no país. A seriedade decorrente fez surgir o primeiro de uma série de problemas com fabricantes de medicamentos

Uma das maiores companhias multinacionais estava lançando novo antibiótico. Com base no que antes acontecia, escolheu nosso hospital como trampolim de marketing. Mas nossa comissão deu parecer negativo, assinado pelo presidente Ênnio Leão, segundo o qual o produto ainda não contava com estudos isentos sobre sua segurança. O gerente geral veio de São Paulo e ofereceu viagem ao Caribe para nós dois, que não aceitamos. O diretor da Faculdade nos chamou a uma reunião e só aceitamos comparecer sem a presença do gerente geral. O diretor acabou subscrevendo o parecer inicial.

ENSINO CONTRA-CONSUMISTA DE FARMÁCIA HOSPITALAR

No currículo médico implantado a partir de 1975 pela UFMG foi iniciado pela primeira vez o ensino contra-consumista de farmácia hospitalar dentro da disciplina também pioneira de PRÁTICA HOSPITALAR. O ensino de contra-consumo foi criminosamente suspenso no currículo após 1985

ENSINO COM PRESCRIÇÃO CONTRA-CONSUMISTA DE GENÉRICOS

No currículo médico implantado a partir de 1975 pela UFMG foi iniciada pela primeira vez a prescrição contra-consumista de genéricos. A partir de 1985, a indústria farmacêutica conseguiu “padronizar” produtos por meio de procedimentos suspeitos de suborno. A estratégia para re-aproximar os alunos dos nomes comerciais de medicamentos culminou com um torneio de futebol no Centro Esportivo Universitário em que os times tinham nomes como persantin e buscopan, sendo os atletas premiados com camisas, bolas, chuteiras, aparelhos de pressão, termômetros e estetoscópios. O docente organizador do torneio teria sido denunciado ao Conselho Regional, mas sem qualquer conseqüência. Infelizmente o lançamento de genéricos no Brasil não aproveitou a experiência pioneira da UFMG, certamente em razão dos interesses em jogo.

BOLETIM CONTRA-CONSUMISTA DISTRIBUIDO A TODOS OS MÉDICOS MINEIROS

A partir de 1980 foi executado audacioso projeto de levar a cada médico de Minas Gerais informações cientificas sobre medicamentos e terapêutica isentas de qualquer propaganda de fabricantes. O conteúdo eram traduções de artigos saídos nos periódicos THE MEDICAL LETTER e no DRUG & THERAPEUTIC BULLETIN. Foi um tremendo sucesso entre os médicos, principalmente os do interior. Causa nostalgia até hoje. A publicação chamou-se BOLETIM DE MEDICAMENTOS E TERAPÊUTICA que era impresso na gráfica ociosa do então INAMPS, com a cobertura corajosa de Adelmar Cadar. Com a posse de Newton Cardoso no governo mineiro a gráfica foi estadualizada e a impressão do boletim foi proibida.

AGÊNCIAS GOVERNAMENTAIS PARA MEDICAMENTOS, EQUIPAMENTOS, ALIMENTOS E SERVIÇOS EM SAÚDE.

A falsificação de medicamentos e a promiscuidade entre a indústria química e o tráfico de narcóticos não eram novidade desde o final da 2ª guerra mundial. A corrupção dos sangue-sugas e da FUNASA e os remédios falsos têm correspondentes na educação, sobressaindo as razões que levaram ao fim do respectivo Conselho Federal. A mercantilização da saúde e da educação, iniciada na ditadura e agigantada no neo-liberalismo de Color-Sarney-FHC, multiplicam ao infinito todo o passivo triste de tão nobres áreas sociais.

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