sexta-feira, 20 de novembro de 2009


NO CENTENÁRIO DE HERMES DE PAULA (1909-2009)

HERMES DE PAULA

Seresteiro e historiador dos lindes roseanos

João Amílcar Salgado

O Hermes chegou ao Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais e se apresentou não como médico e sim como historiador-seresteiro do norte de Minas. Esse homem fascinante, apesar de estarmo-nos apresentando naquele instante, logo me pareceu um personagem de minha infância. Tal é o sortilégio do homem do sertão mineiro, que vi repetir-se com vários outros. No prefácio de seu livro de título feliz, A MEDICINA DOS MÉDICOS E A OUTRA..., escrevi:

[O] historiador daquela medicina que vicejou aprisionada nesse fantástico ecossistema de chapadões e buritis (hoje ameaçado pelo florestamento predatório) não poderia ser (...) mais apropriado do que o médico plural Hermes de Paula, que, com esta obra, se faz professor emérito da medicina não-elitista e sem preconceitos – sem dúvida a verdadeira medicina que nos convém. Seu prolongado e íntimo convívio com a comunidade sertaneja, seu invejado pendor de seresteiro-folclorista, também emérito, bem como seu honroso título de diligente cronista da região conquistaram para ele um lugar de realce no colegiado que preside o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais.

De suas serestas ele, como Riobaldo, poderá dizer: “Arte que cantei, e todas as cachaças. Depois os outros à fanfa entoaram ... mas rogando no estatuto daquela letra e retornando meu rompante; cantavam melhor cantando.” E de suas cavalgadas no sertão da história regional, tal como o referido jagunço, deverá dizer: “Assim eu entrei dentro de minha liberdade” ... “E ainda hoje, o suceder deste meu coração copia é o eco daquele tempo; e qualquer fio de meu cabelo branco que o senhor arranque, declara o real daquilo, daquilo – sem traslado...” Enfim, a lição boa que ele, com este paciente trabalho nos dá, é a citada pelo mesmo Tatarana: “Para um trabalho que se quer, sempre a ferramenta se tem” ... “O resto maior é com Deus...”

Este é um livro repleto de preciosidades sobre gente da maior importância na história das medicinas mineira e brasileira. Começa, contudo, com uma sátira aos médicos, OS DOTÔ DA MEDICINA, do poeta popular Cândido Canela, na qual, bem antes que Michel Foucauld criasse o conceito de medicalização, protestava: Im antes de havê dotô / Num tinha tanta duença; para afirmar: Mais hoje tudo mudô, / Ninguém pode mais falá, / Us nome que seus dotô / Nas duença já qué dá.

De permeio, encontra-se a curiosidade de que Montes Claros nos deu dois médicos que se fizeram conhecidos radialistas: o ginecologista e poeta José Marques Gomes (dom-silveriense mas montesclarense adotivo, que, sob o nome artístico de Paulo Roberto, ancorava os programas NADA ALÉM DE DOIS MINUTOS, LIRA DE XOPOTÓ e HONRA AO MÉRITO na época de ouro da Rádio Nacional) e o sanitarista Teófilo Pires (que lia O NOME DO DIA nas emissoras de Belo Horizonte), dos quais fui habitual radio-ouvinte. E de grande valor é o depoimento do próprio Hermes sobre quando conviveu com nada menos que o formidável cientista Vital Brasil.

Confesso, entretanto, que minhas preferidas no livro do Hermes são as páginas dedicadas aos boticários de antigamente. Eu, que sou de família de boticários e farmacêuticos, me senti mais irmão do Hermes, quando li no capítulo RECEITUÁRIO NO TEMPO DAS FAMÁCIAS (1910-30) a seguinte frase: Guardo bem esta tradição do bem servir das farmácias, pois trabalhei nessa ocasião em farmácia durante algum tempo. Além disso, o autor teve a ótima idéia de transcrever várias consultas e várias receitas, tudo de sabor supimpa para um historiador da medicina. Encantei-me, sobretudo, pelo mais antigo boticário de Montes Claros, Euzébio Sarmento. Tanto, que convenci a Ceres Pinheiro Ribeiro de incluir em sua famosa tese, DE ESTUDANTE DE MEDICINA A MÉDICO NO INTERIOR, a carta que Euzébio envia ao capitão Jacinto Silveira (colhida por de Paula no livro MINHA TERRA, NOSSA HISTÓRIA, escrito pelo filho deste, Olinto Silveira).

Diz a carta de 27/01/1897: Prezadíssimo Sr. Cap. Jacintho. Saudando-o, e a sua Exma. Família, faço votos para que continuem no gozo da melhor saúde e de todas as demais felicidades que desejar se possa. Sinto profundamente que o seu digno pai, meu particular amigo e compadre, continue a passar mal de seus incômodos, e muito mais pela certeza que tenho de estar ele sendo vítima de um estado mórbido diante do qual a ciência médica se confessa impotente. Desculpe-me a franqueza, pois em abono da verdade e testemunho da amizade que consagro a toda a sua Exma. Família, vejo-me na dura necessidade, conquanto cheio de verdadeiro pesar, de declarar-lhe que o seu pai, além dos sofrimentos antigos do fígado e do estômago, que tanto o atormentaram durante a sua laboriosa existência, está sendo hoje vítima de uma grave lesão do coração, de cujo sofrimento pode obter alguns ligeiros alívios mediante um tratamento profilático muito constante e racional, mas não curar, como é do nosso desejo. Não me tenho assomado a auxiliá-lo nesse tratamento com mais assiduidade, porque me reconheço e me confesso inteiramente incapaz para o desempenho duma missão tão espinhosa quão difícil. Remeto-lhe as 20 oitavas de bromureto de potássio de sua encomenda e também um pouco de digitalis em rama, em lugar de digitalina, visto ser este alcalóide eminentemente tóxico, e exigir no seu emprego a mais rigorosa vigilância do profissional que a empregue... Sempre às ordens, aguardo ocasião de ser útil e subscrevo-me com muito apreço e estima. Seu Amo. Ato. Obro. Euzébio A. Sarmento.

Fui a Montes Claros e o sulmineiro Itagiba de Castro Filho, meu distinto amigo, levou-me à casa do Hermes de Paula, onde colocamos em dia nossa conversa sem fim. Ele parecia especialmente feliz, pleno de verve e transbordante de tiradas espirituosas. Seu livro já estava na gráfica e ali combinamos que o lançamento seria ao caráter do autor: ao som do Grupo de Serestas João Chaves, criado pelo Hermes. E na festa, sob as árvores em frente ao Centro de Memória, seria executado todo o repertório da gravação dupla do Grupo, hoje clássica.

Infelizmente o estado de saúde desse médico-seresteiro montesclarense - irmão-gêmeo, em mil aspectos, do médico-seresteiro Juscelino de Diamantina - não permitiu que isso se realizasse. Mas tenho a certeza de que, toda a vez que ponho a tocar essa gravação, o vulto sempiterno de Hermes de Paula paira sobre os acordes, e então se cumpre a frase imortal do virtuose valenciano Joaquim Rodrigo: Nosotros seremos en la eternidad sonidos.

O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais


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