sexta-feira, 20 de novembro de 2009

TRANSFORMAÇÕES E PERSPECTIVAS DA EDUCAÇÃO MÉDICA EM Minas
Os estudantes e professores de medicina de Minas Gerais, bem como os médicos e historiadores em geral, devem ter pleno conhecimento da importância deste Estado na história da medicina brasileira. Antes de tudo devem pelo menos reconhecer como mineiros eminentes médicos brasileiros que foram capazes de façanhas insuperáveis na ciência, na política e nas artes: Vieira Couto, Vidal Barbosa, Tiradentes (terapeuta prático), Francisco Melo-Franco, Silva Teles, Gonçalves Gomide, Soares Meireles, Basílio Furtado, Peter Lund (adotivo), Carlos Chagas, Vital Brazil, Hilário de Gouveia, Hermenegildo Vilaça, Baeta Viana, Wilson Beraldo, Afonso Pavie (adotivo), Osvaldo Melo Campos, Osvaldo Costa, Luigi Bogliolo (adotivo) Marcelo Campos-Christo, Washington Tafuri, Juscelino Kubitschek, Clóvis Salgado, João Antônio Avelar, Agripa Vasconcelos, Antônio Silva Melo, Pedro Nava, Guimarães Rosa e Hélio Pellegrino. Ao mesmo tempo, devem também saber que Minas não só originou o primeiro manual de medicina clínica na Colônia, denominado ERÁRIO MINERAL, de 1735, como inaugurou o ensino médico oficial e regular no país, no ano de 1801, em Vila Rica. Mais recentemente, de 1975 a 1985, o ensino médico desenvolvido sob a liderança da Universidade Federal de Minas Gerais conclamou todas as escolas médicas brasileiras para que abandonassem o conservadorismo em que jaziam desde 1964. O repto consistia em adequá-las quer à sociedade de consumo, quer às inovações tecnológicas, ambos os fenômenos em aceleração crescente após a segunda guerra mundial.
A Faculdade de Medicina da UFMG, responsável pelo segundo curso médico de Minas e pelo primeiro de nível superior, data de 1911, um ano apenas depois do Relatório Flexner e dois anos depois da descoberta da doença de Chagas. Entre os cursos superiores mineiros, ela foi precedida por três cursos em Ouro Preto: Farmácia, Engenharia e Direito, e, em Belo Horizonte, pelo curso de Odontologia (1907).
Em relação ao Relatório Flexner, que, em 1910, reformulou o ensino médico nos EUA, houve notável paradoxo, associado à criação, em 1907, do Instituto depois chamado Ezequiel Dias, hoje Fundação Ezequiel Dias. Caso os fundadores da primeira faculdade de medicina mineira estivessem em sintonia com o que acontecia nos EUA, eles teriam aproveitado aquele relatório para implantar diretrizes inovadoras na nascente escola médica. Como uma dessas diretrizes era o uso de laboratórios de pesquisa biológicos no ciclo básico, a presença do Instituto Ezequiel Dias, criado quatro anos antes, facilitava extraordinariamente esse uso, ainda mais que Ezequiel Dias era justamente um dos fundadores da Faculdade. Tal aproveitamento não se deu porque os fundadores estavam voltados para a Europa e não para os EUA, e o Instituto Ezequiel Dias foi para a nova Faculdade o que o Instituto Oswaldo Cruz foi para a Faculdade do Rio. A semelhança no relacionamento interinstitucional foi favorecida, inclusive, pelo fato de serem irmãs as esposas de Dias e Cruz.
Assim, a diretriz flexneriana só foi trazida ao Brasil quarenta anos depois pela Fundação Rockefeller, quando já não era mais adequada aos EUA e chegou aqui como uma espécie de sucata ideológica, ítem de exportação freqüente na relação entre o primeiro e o terceiro mundos. A inadequação do modelo Flexner aos EUA e, com mais razão, ao Brasil, na segunda metade do século 20 decorreu do acelerado desdobramento da medicina de consumo. No Brasil, o projeto Rockefeller consistiu em financiar a mudança flexneriana nas três principais faculdades das três maiores capitais brasileiras: São Paulo, Rio e Belo Horizonte. No Rio, alguns catedráticos não quiseram abrir mão de feudos universitários e o financiamento para ali destinado foi deslocado para nova faculdade do interior paulista, em Ribeirão Preto.
Esperava-se que os três currículos modelares logo influenciassem todas as faculdades do país. Mas, por causa do anacronismo da importação do modelo, a diretriz flexneriana logo, em menos de uma década, teve de sofrer modificações de graus variáveis. Os médicos formados nesse período passaram a ser chamados de rockefeller generation. Eram mais bem preparados do que seus antecessores, mas vieram a ser particularmente desajustados quanto aos recursos para clinicar, pior ainda quando assalariados. O melhor resultado foi na área da pesquisa, com impulso significativo, mas os potenciais pesquisadores dessa geração foram lamentavelmente mal aproveitados em número e em qualidade.
Como foi dito, a diretriz importada cedo se frustrou, mesmo porque os próprios norte-americanos passaram a exportar outras diretrizes, cada qual substituída antes que fosse testada, inclusive com a substituição da agência exportadora, quando a Fundação Rockefeller cedeu lugar à Fundação Kellogg e, depois, ao Banco Mundial (motor da privatização), acrescida do uso lamentável da Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) como subagências auxiliares. A esse comportamento demos o nome de chuva de modismos (currículo flexneriano, paradigma preventivista, ensino integrado, currículo curto, mastery learning, instrução programada, ensino auto-diretivo, currículo por objetivos, currículo abrangente, integração docente-assistencial, ensino por problema, ensino para a qualidade total, ensino por acreditação, exame de ordem, provão, ensino por evidência, empreendedorismo, currículo humanista e outros em gestação), que prossegue até hoje.
Os fatos relatados aconteceram também na América Ibérica e em outros países habituados a encarar os EUA como modelo. Com a frustração e a desorientação apontadas, acrescida da crescente crise de inflação de custos na assistência médica estadunidense, várias iniciativas independentes de inovação educacional surgiram no México, Inglaterra, Canadá e Brasil. Na própria Organização Panamericana de Saúde, passou a projetar-se cada vez mais a linha independente e original de Juan César Garcia, um argentino que discordava dos paradigmas de exportação, sendo defensor de inovações nascidas das realidades regionais de saúde.
Partidários desta atitude apareceram no México, Peru, Colômbia, Chile e Cuba sendo seu mais notável representante brasileiro Domingos da Silva Gandra. Nos próprios EUA verificou-se fenômeno semelhante em estados como a Flórida, Michigan, Ohio e Novo México, onde pedagogos esboçaram independência diante dos tradicionais centros hegemônicos. Um desses líderes, Lynn P. Carmichael viu sua proposta de médico de família distorcida no nascedouro, quando foi deslocada da graduação para a pós-graduação. Fora das Américas, inovações no Canadá (McMaster) e na Inglaterra (Southampton e Nottingham) influenciaram iniciativas na Holanda (Maastricht), Portugal (Lisboa), Israel (Bem Gurion), Egito (Cairo), Austrália (New Castle) e China (Changai). Infelizmente a estratégia de fortalecimento da União Européia incluiu o desestímulo temporário a inovações educacionais (Bologna), de modo a não acentuar as diferenças entre os países membros.
No Brasil, a inovação mineira levou, a partir de 1979, à regionalização da ABEM, à criação da Associação Mineira de Educação Médica (quando as nove faculdades de então estavam sintonizadas no mesmo rumo de mudança e de se tornarem todas públicas), do Conselho Estadual de Saúde (influenciando a criação de outros conselhos estaduais, dos conselhos municipais e do Conselho Nacional de Saúde) e ao surgimento do internato rural fora da UFMG, inclusive na Amazônia, bem como à eleição de um brasileiro para presidir a OPAS (Carlyle Macedo), de outro brasileiro (Philadelpho Siqueira) para presidir a Federação Panamericana de Escolas Médicas (FEPAFEM) e de um dos líderes (Cid Veloso) a reitor da Universidade Federal de Minas Gerais. O mesmo movimento foi um dos pontos de origem da chamada Campanha das Diretas, ou seja, da redemocratização do país, e seus líderes estavam preparados para provocar inovações semelhantes distribuídas por todo o país, caso houvesse a posse e o governo Tancredo Neves. Se tivesse havido este governo, o sistema de saúde que se esboçava, teria sido o inverso da bagunça atual e seria até mesmo modelo para outros países.
Os governos federais, gradualmente, a partir das administrações José Sarney e Itamar Franco, primaram pelo desmonte de cada uma destas conquistas e por neutralizar e minar a sustentabilidade da inovação mineira. Sarnei, trêmulo diante da prepotência de Margareth Thatcher e de Ronald Reagan, passou a fazer o contrário de tudo o que Tancredo ia fazer, particularmente favorecendo as universidades católicas em detrimento das federais. Itamar, que, por pressão de denúncias mineiras, acabou com o corrupto Conselho Federal de Educação, quando voltou a Minas para ser governador, teve atitude oposta para com o Conselho Estadual de Educação – e o resultado é o horripilante desastre que aí está, de uma escola médica a cada esquina. Por sinal, as administrações Thatcher e Reagan fizeram tudo para inviabilizar o Congresso Mundial de Educação Médica em Edimburgo, em 1988, e ainda abafaram suas conclusões. Reagan antes já havia imobilizado o brasileiro Carlyle Macedo como presidente da OPAS, escalando espiões que o vigiaram durante todo o tempo de sua gestão.
Tudo isso tornou ininterrupto o sucateamento das universidades públicas, o corte orçamentário e o rebaixamento salarial, transformando os hospitais universitários em caricaturas assistenciais. Mas o principal malefício foi o vilipêndio da educação, convertida em covil de gente gananciosa, obcecada com o lucro a qualquer custo, sob o comando perverso de apedeutas pedagógicos, encastelados em organizações crescentemente milionárias, ornadas com quase todas as características do crime organizado.
As perspectivas mundiais hoje estão melhores, com o crescimento econômico e o fim da era Bush e com Barack Obama ousando tocar no até então intocável setor saúde. Já a América do Sul, antes infelicitada pelo triste trio Menem-Fujimore-Henrique Cardoso, viu emergir, em reação, o trio populista Evo-Chaves-Lula. Ambos os trios exibem, em comum, olímpica indiferença pela saúde e pela educação, cujo futuro, portanto, prenuncia-se sombrio no Brasil e em Minas Gerais. Para nossa maior desgraça, os dois jovens ministros do segundo mandato Lula, exatamente o da saúde e o da educação, despontaram até como presidenciáveis, mas deixaram de sê-lo, em virtude dos escândalos endemo-epidêmicos e do caos na saúde (agravado pelos episódios espantosos do caldo de cana, do açaí, da dengue invencível e dos mistérios da gripe suína) , dos escândalos das verbas educacionais do ENADE e do ENEM, bem como da inteligente ironia de um dos dirigentes de uma faculdade baiana. Como pilotos da trágica nau-insensata da saúde-educação, se subsistirem, serão instruídos a persistir na estratégia de não incomodar a lucratividade sem freios das indústrias de educação e de saúde. E nada de bom pode surgir para a educação e a saúde neste país, caso estas indústrias, cada vez mais poderosas, não sejam disciplinadas e submetidas ao interesse de nossas necessidades sociais.
O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Este texto é fração modificada a partir da palestra de abertura do Congresso Mineiro de Educação Médica, Uberaba, maio de 2007.

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