terça-feira, 1 de junho de 2010

CINQUENTENÁRIO DA COMERCIALIZAÇÃO DA PÍLULA ANTICONCEPCIONAL – TRIBUTO A ALOÍSIO RESENDE NEVES

João Amílcar Salgado

O mineiro Aloísio Resende Neves diplomou-se na Faculdade de Medicina da atual Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1935 e, em 1941, fez a primeira comprovação em indivíduo humano do efeito contraceptivo dos hormônios sexuais. Estes hormônios eram até então tidos como conceptivos pelos ginecologistas, endocrionologistas e urologistas. Este fato, que é um marco na história geral da medicina, se ocorresse em qualquer outro país, seria utilizado para promoção nacional e proclamado permanentemente. Aqui, sobretudo na religiosa e ultraconservadora Minas Gerais da década de 40 do século 20, o tema de sua conquista científica foi considerado antes de tudo indecente, não havendo condições sequer para que sua publicação fosse adequadamente apreciada pelos próprios cientistas mineiros. Mesmo assim é no mínimo estranho o silêncio de Baeta Viana sobre o assunto. Mais tarde, quando de tal conhecimento resultou a revolucionária introdução da pílula anticoncepcional na vida moderna, então as razões para ignorar a primazia de Aloísio Resende Neves foram reforçadas pelo interesse econômico dos que participaram do arranjo sobre as respectivas e bilionárias patentes comerciais.

A primeira evidência de que os hormônios sexuais eram contraceptivos, em vez de conceptivos, foi obtida em animais, em 1921, por Gottlieb Haberlandt, um botânico austro-húngaro (também desenhista e músico), que antes ficara famoso por ter descoberto a cultura (clonagem) de células (no caso vegetais) e investigava hormônios vegetais. Esta evidência ficou limitada ao âmbito da biologia e foi ignorada por pesquisadores médicos e mais ainda pelos clínicos em seus consultórios, nomeadamente os citados ginecologistas, endocrinologistas e urologistas. No histórico da pílula anticoncepcional, a maioria dos autores costuma iniciar pela data de 1960, com o nome de Gregory Pinkus, o que é um erro elementar, ainda mais por dar-lhe o título de pai da pílula. Pinkus foi apenas o experimentador em massa (e em condições anti-éticas) da progestina, descoberta quase dez anos antes.

Os registros mais isentos da literatura realmente científica dão como marco inicial a data de 15 de outubro de 1951, quando o jovem mexicano Luís Ernesto Miramontes Cardenas, estagiário de química no laboratório de Carl Djerassi (vienense filho de judeu búlgaro), fez revolucionária descoberta. Pela primeira vez, a partir de um vegetal, a batata doce nativa do México, criou um análogo sintético da progesterona animal. Quimicamente, inaugurou a família dos progestágenos de síntese ou progestinas. O novo produto, um anovulatório, passou a ser chamado de noretindrona ou norestirona e foi patenteado por Miramontes, Djerassi e Jorge Rosenkranz para a companhia química mexicana Syntex. Djerassi, depois, se tornaria famoso também como escritor e autor teatral e, em suas peças, aborda disputas por precedência científica, certamente com base em seu próprio envolvimento nesta descoberta.

Entre a verificação realizada em animais, em 1921, pelo botânico Haberlandt e a síntese obtida pelo químico Miramontes, em 1951, teria transcorrido um silêncio aparente de trinta anos. Tal silêncio, entretanto, de fato não ocorreu, pois houve a contribuição do cirurgião brasileiro Aloísio Resende Neves, que, em publicação de agosto de 1941, documentou, pela primeira vez no indivíduo humano, o efeito contraceptivo dos hormônios sexuais. Seu artigo foi publicado na revista médica brasileira O HOSPITAL com o título CAPACIDADE ESTERILIZANTE TEMPORÁRIA DOS HORMÔNIOS ANDROGÊNICOS. Sua verificação foi propiciada por uma paciente de aspecto feminino normal e que tinha tido filhos. Desenvolveu masculinização progressiva e foi operada por Neves que lhe removeu tumor masculinizante benigno. Após a operação voltou a ter seu aspecto feminino anterior e voltou a ter filhos. Durante a masculinização prosseguiu tendo relações sexuais com o marido e não houve gravidez. O cirurgião então concluiu que o excesso de hormônios androgênicos esterilizara seu sistema reprodutor.

Embora houvesse evidencia de tal fenômeno em animais de experimentação, o fato não tinha sido documentado em indivíduo humano, como sobredito, e nem os livros especializados o assinalam. Ao contrário nesta época a noção geral era de que os hormônios sexuais eram fecundantes ou conceptivos. Assim o mérito do médico mineiro Aloísio Resende Neves é incontestável, sua primazia está documentada e ele tem o direito de ser considerado o descobridor da anticoncepção hormonal humana, ou seja, o princípio da pílula anticoncepcional.

Nem sequer é possível alegar que seu feito foi ignorado por ter sido publicado em revista médica brasileira e em português. Isso porque o periódico O HOSPITAL era indexado na data de agosto de 1941, ou seja, seu artigo consta do INDEX MEDICUS. Há documentação oriunda de autoridades científicas dos EUA que reconhecem sua primazia. Já em relação à patente da descoberta, as autoridades daquele país alegam que teria de ter sido requerida à época, o que Neves não fez. Este então, em demanda judiciária, passou a solicitar que reconheçam sua patente a posteriori, como foi feito recentemente para descobertas japonesas, em acordo para que o Japão entrasse no sistema internacional de patentes. Como a soma devida ao descobridor mineiro seria altíssima, ele a ofereceu para pagamento da dívida externa brasileira. Sua reivindicação prossegue desatendida.

Circunstancia interessante da descoberta de Aloísio Resende Neves (parente de Oto Lara Resende e de Tancredo Neves) foi o fato de que tal tema era considerado indecente mesmo entre a comunidade médica, mais ainda na conservadora sociedade mineira da época, dominada pelas posições radicais do bispo Antônio Cabral. Logo que circulou a notícia de suas conclusões, ele passou a ser alvo de chacota por parte de colegas médicos, foi proibido pelo bispo de pronunciar conferência na Santa Casa e foi obrigado a deixar seu cargo de assistente na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais (hoje UFMG).

Muitas pessoas usavam preparações hormonais, pois era uma novidade científica com o nome de opoterapia. Um dos usuários era o próprio médico Juscelino Kubitscheck que tinha voltado com este hábito da clínica onde estagiou em Paris. Como o futuro presidente estava casado e sem filhos, seu caso foi evidencia adicional a Neves, que o aconselhou a suspender a opoterapia e em conseqüência o casal teve uma filha

O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais

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