quinta-feira, 24 de junho de 2010

INCÊNDIO NO BUTANTAN, SEGUNDA MORTE DE VITAL BRASIL

João Amílcar Salgado

O incêndio ocorrido no Instituto Butantan, em 15 de maio de 2010, deve ser considerado a segunda morte do cientista mineiro Vital Brasil. Tal desastre significa que, desde o falecimento de Vital Brasil em 1950, uma das partes mais expressivas de sua produção científica, que é a coleção de animais peçonhentos iniciada por ele, ficou grave e irreversivelmente danificada, em virtude do descaso com que vem sendo tratada por décadas. Esse descaso é coerente com o menosprezo por sua memória pessoal, tanto por parte de cientistas como de historiadores.

De fato causou pasmo generalizado saber da inconcebível falta de condições de proteção ao acervo incendiado. Isso, se somado à recente (final de 2009) denúncia de corrupção no Instituto, é mais espantoso ainda, multiplicando as dimensões da ofensa à memória de Vital Brasil. Sob o fogo, milhares de exemplares de serpentes, aranhas e escorpiões foram perdidos em condições irremediáveis. As chamas começaram entre sete e oito horas da manhã e às dez horas, inexplicavelmente, nada pôde ser feito para proteger a inestimável coleção. Como sempre, logo depois, gente encarregada de minimizar os efeitos políticos do escândalo veio dizer que a coisa não teria sido tão grave assim.

Quanto à corrupção no Butantan, não se pode saber quando começou, pois desde 1985 a administração é a mesma. Segundo a imprensa paulista, pelo menos 35 milhões de reais saíram da fundação para empresas e destas para funcionários. Uma companhia de manutenção de equipamentos é acusada de ficar com 24 milhões. A quadrilha teria feito depósitos que, segundo a direção empresarial, não eram do conhecimento desta. Os desvios podem chegar a cem milhões.

Diante disso uma pergunta é imediata: que segurança podem ter os produtos bio-farmacêuticos destinados a milhões de brasileiros? A dúvida sobre descuido, desvio e falsificações dos respectivos insumos se impõe de pronto. Para aumentar tal desconfiança, lembramos que, na epidemia de gripe suína do ano precedente, houve generalizada decepção em relação ao que se esperava do Instituto Butantan. Se não há segurança contra o fogo e contra o desvio de recursos, como confiar nas vacinas ali produzidas e na capacidade da instituição para futuros desafios sanitários?

O Instituto Butantan começou muito bem com Vital Brasil. Deu passos duvidosos desde que o criador mineiramente julgou que era a hora de ausentar-se. Deixou sua criatura para que outros nela procurassem servir à ciência tanto como ele, permitindo até que se assenhoreassem do que era intransferivelmente dele. Ele, que derrotou o ofidismo, teve de engolir sapos (entre estes até a sórdida acusação de mercenário), em favor da sobrevivência da ciência, a partir do ponto a que chegou. Tanto sacrifício terá valido a pena? Agora sofre outra enorme agressão. Sim, um óbito adicional lhe é infligido, quando fatos e denúncias passam a manchar lamentável e indelevelmente a parte que lhe cabe da ciência brasileira.

O ano de 2009 foi o ano da comemoração do centenário da maior realização da ciência brasileira: a descoberta da doença que traz o nome de seu autor, o mineiro Carlos Chagas – a quem, por vilania inconcebível, foi retirado o prêmio Nobel de 1921. Já 2010 é o ano em que mais um cientista mineiro, Vital Brasil, é vitimado. Vergonhosa desídia impõe-lhe segunda morte, sob o impacto de escândalos financeiros somados a escandaloso incêndio. Que lástima contemplar hoje assim o Instituto centenário, criado por ele, com desprendimento e heroísmo!

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